Um dia nossas lápides não serão mais visitadas. Não lembro se esta frase me pertence ou a roubei de algum muro da infância. De qualquer forma, não me abandona nunca. Minha pequena filha caminha insegura por entre os restos do cemitério quase abandonado no litoral catarinense. Ao longe, o mar; sob nossos pés, a morte. Seus passinhos são guiados pela minha curiosidade de ler lápides destruídas pela sanha do tempo, que não se importa (nem um pouco) em remodelar a cada segundo a nossa história. Crianças, jovens e velhos perfilados. Todos desconhecidos. Nomes e datas tentavam em vão deixar uma marca qualquer. Impossível. Aqueles túmulos não eram visitados há uma imensidão de tempo. Eu não significava nada ali. As mãos de minha filha começam a escorregar de meus dedos no calor de janeiro. Regressamos lentamente. Carrego comigo histórias que não me pertencem.
•••
Sempre que envolvo as mãos de minha filha, lembro-me de minha mãe. No antagonismo que as une. Na distância que as separa. Na delicadeza da mão infantil; na dureza dos dedos da mão direita da mulher que me carregou pelas ruas de C., num tempo em que nossos corpos e silêncios eram muito mais próximos. Restaram pouco mais que os silêncios. Os dedos da mão direita de minha mãe são mais grossos do que os da esquerda. A lida executara um bom trabalho. No machado, a cortar lenha para aquecer a antiga casa. Os nós dos dedos foram engrossando até que se tornassem gigantescos tentáculos, que não conseguiram abarcar o mundo — um mundo tão pequeno, mas infinito.
•••
C. sempre foi deste tamanho, nem maior, nem menor. Assim, como a vemos agora, com seus carros, suas gentes, loucuras e tristezas. Sempre pensei em C. como um lugar triste; grande e triste. Fomos nos moldando a ela, e ela a nós, num pacto silencioso, como tudo em nossas vidas. Desde a nossa chegada — a manhã nascia por entre a neblina; nós espreitávamos tudo de dentro da cabine do caminhão que nos arrancara de uma terra indesejada —, C. se mostrara um mistério que tínhamos muito receio de desvendar. Aventurávamo-nos por suas ruas, corríamos sob a fúria dos carros que queriam nos expulsar do asfalto. Nossa mãe nos guiava com seus passos analfabetos naquele novelo de ruas, prédios e rostos, suas mãos tornavam-se ainda mais duras ao agarrar-nos pelos braços, ombros, cabelos, numa desabalada corrida a cortar a mais larga das ruas, em frente ao shopping, onde nunca, nunca, ousamos entrar, pelo menos até a adolescência, quando C. parecia que encolhia. Era apenas impressão — nos sufocava ainda mais.
•••
Antes de chegar a C., não tínhamos de nos preocupar com corridas ensandecidas por entre carros, fumaça e muita gente. No fundo de casa, ao lado do açude, o galinheiro. O cheiro de penas, fezes e milho é indelével mesmo na algaravia tingida de púrpura contra os prédios. Inesquecível. Ali, Branquinha (a galinha) ciscava com a certeza de que nunca iria para a panela. Todas, menos ela. Nunca tivemos animal de estimação. Tivemos animais de sobrevivência. Mas Branquinha tinha privilégios. Seu destino era a liberdade. Não se arrepiava nem mesmo quando o pai rumava ao chiqueiro, normalmente no sábado pela manhã. É simples: engorda-se o porco; no epílogo, levanta-se a pata e empurra a faca com violência na carne. O grito permanece durante dias a rondar a casa. Se estivéssemos em Comala, com certeza, Pedro Páramo nos visitaria para ajudar na feitura do torresmo, no tacho imenso a fumegar no terreiro durante horas. O grito de um porco a debater-se antes da morte não se esquece nunca.
•••
Brincávamos no terreiro quando a poeira da estrada nos avisou de que havia muito não chovia e um carro quebrava a monotonia que nos cercava em algum lugar do mapa de Santa Catarina. É dos grandes, gritava meu irmão mais velho, experiente em observar os monstros que às vezes cortavam aquelas estradas de terra. Não sabia ele que a rotina dos carros nos esmagaria pelo resto da vida. Não deu tempo de quase nada. Apenas vimos a nuvem de poeira, um ruído de esmagamento. O caminhão ia longe, deixando para trás um amontoado branquinho entre pó, sangue e penas.
•••
Corram, corram, corram. O grito de minha mãe ecoou forte diante daquela rua que a nós, animais recém-fugidos do mato, parecia intransponível. Rio em dia de chuva excessiva. Do outro lado, o shopping — palavra que não sabíamos pronunciar. Queríamos apenas atravessar aquela rua cujo negrume do asfalto muito nos assustava. Éramos todos: minha mãe, eu, meu irmão e minha irmã. Lembrei de Branquinha e da cor indefinível em que se transformara na tarde ensolarada. Pensei na pinguela sobre o rio que sempre atravessávamos para catar jabuticabas. Não havia pinguela; somente carros, muitos carros, gentes, semáforos, cores que eu não sabia definir. Ser daltônico nunca me ajudou em nada. Havia faixas brancas no negro asfalto. Uma visão adequada a um daltônico, mesmo sem compreendê-la. Corremos sob as asas protetoras de minha mãe. Do outro lado da rua, não havia uma única jabuticabeira.
•••
Os jogos eletrônicos nunca me seduziram. Mas tinha certa fascinação por Freeway (o jogo da galinha). Uma piada perto da pirotecnia que envolve o imaginário das crianças hoje. Era início da década de 1980. Aos poucos, íamo-nos moldando a C. e ela a nós, num jogo de sedução e repulsa. A brincadeira no Atari de um amigo “rico” consistia em tentar fazer uma galinha chegar ao outro lado da rua, esquivando-se dos carros. A galinha só podia ir para frente e para trás. Não havia muitas alternativas.
Não lembro se a galinha era branca. Não consigo lembrar de todas as histórias que carrego e sempre me pertenceram.