Os cavalos estão lá embaixo. No final da rua, num cercado de arames enferrujados, pastam a grama rala e ressequida. Roçam o rabo, o pêndulo natural, na pelagem eriçada. São apenas três animais em meio às casas — parecem deslocados, mas não destoam da paisagem bucólica que se expande diante de seus contornos. A bicicleta enrosca-se às mãos magras e indecisas. Há certa expectativa quando o convido para cruzar o portão. Estamos nos acostumando ao nosso reduzido mundo, à clausura imposta pelo desconhecido. Aprendeu com a mãe a equilibrar-se há poucos dias. Agora, preciso somente afastar a hipótese da queda, do arranhão nos joelhos, do hematoma na pele. Ele se parece comigo em muita coisa. Até nisso: somente às bordas de abandonar a infância, conseguiu andar de bicicleta.
Não imaginávamos que ela morreria. Não ali, estirada na rua poeirenta e chamuscada de pedregulhos. A morte era apenas uma assombração que nos rondava nas histórias da mãe em noites de tempestade. Havia sangue na camiseta branca. O símbolo da escola pública borrado de vermelho. Vertia do nariz um filete que se transformava em gotas gordas na altura do queixo. O choro nos assustava mais que a vermelhidão. Nossa irmã caçula — uma menininha mirrada, de olhar um tanto fugidio — berrava a dor causada pelo ciclista enfurecido e estabanado. Não vimos de onde saíra. Andávamos na indolência da infância em direção à escola. Sempre íamos os três irmãos. Não éramos amigos — apenas compúnhamos uma família por imposição do pai e conivência da mãe. Sempre fôramos um desajeitado acidente genético, uma tentativa de amor à deriva. Nunca transformamos a irmandade em afeto, palavras, abraços. Fomos moldados no silêncio e no medo do pai — um bruto, um selvagem perdido numa cidade que nos espantava.
O equilíbrio é delicado. As pernas magras têm força, mas a rua parece transbordar para as beiradas — um mar seco povoado de lambaris. Alinha a bicicleta rente ao meio-fio. Mantenho uma distância segura e o guio com palavras. Como se frases curtas e prosaicas fossem capazes de amparar um filho. Vá até lá embaixo, perto dos cavalos. O pedido — longe de ser uma ordem — encontra um garoto sorridente, feliz por ter descoberto que é possível não cair. Em pedaladas vigorosas e ainda cambaias, afasta-se.
Tudo parecia impossível. A pouca paciência do irmão alojava-se em meus punhos de menino. O território conhecido zombava de meu medo, revoltava-se em movimentos bruscos, o chão movia-se como se o demônio o espetasse das profundezas. Sentia o garfo do tinhoso a futucar a sola dos meus pés. Sobre a bicicleta encontrada abandonada no paiol de ripas da floricultura eu tentava contrariar a minha lógica: cair sempre. Segure firme, olhe pra frente e pedale, pedale, pedale. A oratória infantil do irmão escondia, com certeza, a pilhéria do tombo. Eu me estatelava sempre a poucos metros do limoeiro. Minha trajetória de equilibrista era risível. E todos riam a minha volta. Nunca desejei domar nada, tampouco uma bicicleta. Ainda mais aquela: sem pneus, o aro de metal a arrancar nacos do terreiro, a compor a trilha sonora nos confins do inferno.
Meu filho olha o cavalo branco pastar na lerdeza da tarde. Ampara o corpo magro no guidão da bicicleta. O suor escorre em filetes pelo rosto oblíquo. O calor traz poeira e uma seca angustiante. Não chove há mais de trinta dias. O sul também tem sua matilha de Baleias agonizando. O céu sempre azul é prenúncio de dias difíceis. Já estamos nos acostumando a uma vida de muitas privações. Por que estes três cavalos ficam aqui? Não sei nada sobre os animais. Apenas que há alguns anos ocupam todo o amplo terreno no final da rua. Às vezes, o improvisado potreiro permanece vazio durante alguns dias. Em seguida, os animais retornam à rotina de pastar e afugentar moscas com o pêndulo do rabo.
Quando enterraram nossa irmã, colocaram o caixão sobre um carrinho de madeira. O túmulo de concreto ficava numa parede lateral à entrada do cemitério. Fomos naquela procissão de tristeza e lamento. Amparamos a mãe no desespero inevitável. O sol tingia de fogo tudo ao redor. Como uma moldura funérea, pequenas fotos estampavam a devassidão da morte. Notei as rodas finas iguais às de uma bicicleta. Uma das poucas coisas que nos uniam era um acidente envolvendo um ciclista numa manhã da infância. O sangue a pintar um riacho no rosto infantil. Agora, adulta, a última viagem de nossa irmã me parecia uma desagradável ironia.
(Deitamos a irmã na cama. Os calombos se acentuavam com o passar do tempo. O sangue secara na pele delicada. Eu e o irmão olhávamos cúmplices: não precisaríamos retornar à escola. Ficaríamos vagabundeando enroscados a uma bola de futebol em volta da casa. A irmã tinha o corpo riscado pelo encontrão. E ainda chorava baixinho, agora envolta nos braços magros da mãe.)
Imagina que está montado num cavalo. O irmão, estranhamente, apelava para nossas origens na roça — quando voltávamos a casa da avó materna a sacolejar sobre um pangaré. A paciência comigo já acabara havia muito tempo. Os berros me empurravam cada vez mais para as encostas. Os esfolões preenchiam a geografia da pele. Não conseguia aprender algo banal: andar de bicicleta. Nem Rocinante seria capaz de me livrar daquela vergonha. Meus moinhos de vento eram tão inimagináveis quanto os das pradarias de Castilla-La Mancha. Mas minha triste figura talvez fosse ainda mais triste.
(Alguns anos depois, levamos o corpo da mãe no ridículo carrinho e o depositamos ao lado da filha. Eu não entendia a perversa lógica da ironia que as aproximava.)
Meu filho desvia o olhar dos cavalos, apruma o corpo e impulsiona as pernas. O desejo do movimento o seduz. Vejo-o pedalar com vigor e dedicação. Ainda não consegue o equilíbrio perfeito. Mas evoluiu muito. Desejo que os inevitáveis tombos lhe sejam leves. Caminho lentamente atrás de um menino que se afasta em direção a casa. Poucas nuvens no horizonte, para além da rodovia, talvez tragam alguma chuva.