Toda cicatriz desaparece

Quando depositamos o caixão sobre a estrutura mal-ajambrada e começamos a empurrá-la, a imagem me pareceu risível
27/02/2020

Era o último gesto: enterrar a mãe. Não estávamos todos ali. A filha — minha irmã — aguardava dependurada no túmulo vertical onde a enfiáramos havia alguns anos. Uma ausência à espera de outra. Foi numa madrugada de calor — de repente estava morta no hospital. A mãe ganiu feito uma desgraçada no amanhecer daquele dia. Enterramos a caçula da família numa gaveta de concreto num cemitério ordinário, assombrado por um muro carunchado e uma igreja de pífios milagres. E seguimos a vida à espera da próxima morte.

O carrinho tinha rodas exageradas para facilitar o trajeto da capela mortuária até a lateral do cemitério. Quando depositamos o caixão sobre a estrutura mal-ajambrada e começamos a empurrá-la, a imagem me pareceu risível. Poucos homens magros — herdamos talvez da fome uma elegância indesejada — a conduzir o corpo mastigado até as vísceras pelo câncer. Lembrei das diligências a fugir em desabalada corrida de índios e bandidos nos filmes de faroeste na infância. Mas não havia flechas nem balas vindo em nossa direção. Éramos atingidos pelas faíscas de um sol indecente e o choro miúdo das minhas tias.

O terreiro pedregoso era ladeado por cedros gordos. Ao redor, milhares de flores na chácara que nos serviria de morada ao chegar a C., após a fuga de uma roça que, apesar de todas as tentativas, ainda nos chama o tempo todo. A casa pequena de madeira, sem banheiro, mas com um chuveiro e luz elétrica, transmitia-nos um ilusório conforto. Vivíamos espalhados naquela imensidão: escola, trabalho entre as plantas e algumas brincadeiras. Ali, cometi a maldade que jamais me deixou em paz. Acompanha-me na permanência das insônias. Quando a mãe surgia a bufar uma raiva inexplicável, tínhamos certeza: era a hora da surra. Não havia método ou lógica, mas minha irmã — uma menininha franzina e delicada — apanhava da mãe todos os dias. A nós, os dois filhos, raramente sobravam socos, tapas, chineladas, beliscões, vassouradas. A mãe não tinha gosto especial pelo instrumento da tunda: o importante era abater o passarinho em pleno voo. Talvez quisesse descontar na filha a vida miserável que a arrastava feito um espantalho andarilho por uma plantação desprovida de inimigos para afugentar. O marido alcoólatra, as sovas nas noites de gritos e desespero, as ameaças de morte, o esôfago estrangulado, a boca sem nenhum dente. Alguém deveria ser culpado por tudo aquilo. Deus era inocente. A mãe abraçava a Bíblia com uma fé ignorante, de palavras escassas e leitura deficiente. Assim, Deus a protegeria do pior. Mas o pior sempre é possível. Talvez a culpa fosse da última a ser expulsa do ventre estraçalhado — a filha caçula, minha irmã.

Meus olhos de criança sempre viram a mãe como uma velha. Mas naquela época tinha pouco mais de trinta anos. A boca banguela, quase analfabeta, a sola dos pés rachados, as mãos enormes com dedos nodosos — tudo ajudava para esculpir uma figura que nos causava um misto de temor e pena. Tinha poucas palavras a nos oferecer. A mão em movimento pendular talvez quisesse dizer “esta é minha maneira de amá-los”. Nunca perguntei por que batia tanto na filha mais nova. É possível que não soubesse a resposta. Um dia, estariam juntas para sempre. Bem antes do que todos imaginávamos.

Todo começo de ano chega a cobrança pela manutenção do túmulo que abriga mãe e filha. É um valor ridículo para esconder duas mortes e várias surras. Ambas morreram jovens: a filha aos vinte e sete anos; a mãe com pouco mais de sessenta. Mas sempre uma dúvida entranha-se entre o código de barras e o valor a ser pago: o que acontece se eu não pagar? Arrancam as duas e as jogam do outro lado do muro? O que ocorre com os mortos inadimplentes? Na dúvida, pago e escondo o comprovante no fundo da gaveta, juntamente com a oração de santa Edwiges.

Onde está sua irmã? A pergunta da mãe era, como quase tudo que falava, bastante simples. Mas a resposta poderia causar vergões, manchas roxas, lágrimas na menina que em poucos anos estaria morta. Eu sabia onde ela estava. A maldade infantil agarra-se facilmente aos gestos inconcebíveis. Catei uma pedra pontiaguda no terreiro e a arremessei em direção ao cedro. As chances de acertar eram mínimas. O útero da árvore abrigava uma futura morta. O baque seco — um som quase imperceptível — produziu o berro. A menininha abandonou o esconderijo aos gritos, a boca a engolir o reduzido mundo a nossa volta, as lágrimas a explodir os olhos. No centro da testa a nascente de um córrego de sangue. Estranhamente, a mãe desistiu da punição (qual seria o motivo desta vez?), acolheu a filha nos braços e a levou para dentro de casa. Uma mãe, às vezes, é solidária na desgraça familiar.

Levei a ponta do indicador lentamente em direção à testa. A irmã espremida no caixão entre crisântemos. Era uma morta bonita, jovem, sem nenhuma doença grave. Nada. Apenas de repente morreu. A vida sumiu do corpo saudável. Desistiu dos movimentos. Num átimo, tudo estava acabado. Ao contrário da mãe que agonizou durante anos e morreu feia, destruída pelo câncer. Senti na pele o contorno suave da cicatriz — um ponto pequeno, mas visível, no meio da testa. A cicatriz a acompanhou do cedro ao caixão. Nunca pedi desculpas ou perdão. Jamais confessei ao padre minha eterna culpa. O inferno me espera.

Tiramos o corpo da mãe da improvisada diligência para colocá-lo no túmulo. O sol incendiava tudo ao redor. O funcionário do cemitério, com a rapidez necessária para se livrar de mais uma morte, enfiou-se na escuridão da tumba e retirou um saco plástico preto com ossos. Era minha irmã. Logo após enfiar o caixão da mãe, ele acomodou os ossos ao lado. Tudo com muita destreza e eficiência. Mãe e filha unidas para sempre. Logo o pai também morrerá. Vou enterrá-lo com a esposa e a filha. Serão muitos socos, pontapés, surras sem fim, ameaças estrondosas de morte, aprisionados na eternidade.

Carregamos todos várias marcas. Tenho uma cicatriz enorme na perna direita. O pai ostenta algumas pelo corpo — um pedaço de lenha a voar do machado, um coice de um cavalo vingativo. A mãe tinha um corte que se estendia pela sola do pé esquerdo. Meu irmão já despencou algumas vezes do telhado onde tenta ganhar a vida.

Mas não há com que se preocupar: nenhuma cicatriz resiste à morte.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho