Sempre aos domingos

O dia da “folga” e “diversão” sempre foi estranho para o cronista, acossado entre Deus, crisântemos, cemitério, trabalho, sexo, prisão e porres
Ilustração: Carolina Vigna
01/09/2024

Nasci num domingo. A hora incerta perdeu-se no silêncio após a morte da mãe, abocanhada pela ferocidade do câncer. Nunca perguntei, nunca a curiosidade atiçou-me o momento exato, marcado por um relógio inexistente, da minha chegada neste mundo. Ao pai, de nada adianta questionar, palavras já não lhe fazem nenhum sentido, não reverberam no cérebro corroído pelo álcool. É um zumbi mambembe. Suas memórias não passam de trôpegos e envergonhados fantasmas. Imagino que tenha sido à noite e caía uma tempestade, relâmpagos inundavam a escuridão desprovida de energia elétrica. Em algum diálogo banal, a ideia de uma noite assombrosa ganhou contornos de verdade. Não veio à luz, mas à escuridão, disse a mãe, numa estranha frase, meio deslocada numa boca de exíguas palavras. Havia na sentença um misto de ironia, amargura e rancor. Tampouco eu tinha gana de ultrapassar os limites do útero. Faz parte do imaginário familiar — pelo menos de um imaginário que eu criei, já que nunca fomos uma família — que revoluteei durante três dias na pança, ainda jovem, da mãe. Exausta, o parto natural em casa, longe da segurança de um hospital. Um hospital era apenas uma miragem naquele deserto de ralas plantações de milho, feijão, mandioca e pouco mais. Contou-me a mãe: a parteira te arrancou à força. Talvez fosse um exagero daquela mulher, minha mãe, cuja sina seria carregar nas costas vida afora uma tristeza esmagadora. Mas foi assim: nasci de parteira num domingo de tempestade, na roça. O pai, como era tradição, não estava por lá. Andava em algum boteco, com amigos, a beber suas desgraças, seus desgostos. Como dizia sua mãe, minha avó paterna, éramos pequenos diabos, uns diabinhos a nascer. O pai preferia ficar longe do inferno que ele mesmo construíra.

Nunca tive muito interesse pelo meu aniversário. Na infância, a mãe simplesmente esqueceu de um deles. O dia vinte e um de janeiro já avançava para o fim da tarde, quando ela me olhou com certo espanto: mas hoje é seu aniversário! Sim, era meu aniversário, mas sabíamos que isso não tinha muita importância no arranjo possível daquela vida. Talvez resida aí, diriam os terapeutas de plantão, minha total indiferença a aniversários, festas e demais inutensílios. Nunca atice a sanha de diabinhos adormecidos.

Os domingos eram dias estranhos. Entre o trabalho e Deus, havia muitas vezes os porres do pai e sua violência, uma visita inesperada ou um gol solitário com aquela ridícula zebrinha num programa que nada tinha de fantástico. Aquele homem que jogava dinheiro à plateia na tevê — um pândego a brincar com a miséria ao redor, um verdadeiro palhaço a reproduzir filhas e a ostentar uma fortuna aos desafortunados; um legítimo idiota sorridente — causava grande ilusão na mãe. Ela vivia com as gavetas abarrotadas de cartelas com vários números. Aos domingos, sonhava com o fim da miséria. Morreu com pouco mais de sessenta anos na miséria. Nas gavetas da velha casa, encontrei diversas cartelas. Queimei-as com raiva e devoção. Agora, que o palhaço estridente morreu, rezei num sussurro em sua homenagem: grande imbecil.

Boa parte dos domingos, passávamos entre a igreja e o cemitério. Não havia descanso. Logo cedo, íamos pedir misericórdia a Deus. Eu só não sabia misericórdia exatamente do quê. Talvez do azar de termos as patas bífidas do coisa-ruim. Mas isso não era nossa culpa. Enfim, íamos à missa rezar, estudar para a primeira comunhão, roubar hóstias e olhar as canelas finas das meninas. Sempre encarei as idas à missa como uma maneira de prescrutar também as portas do inferno. Lutava contra a vontade da mãe de nos colocar (éramos três filhos) no caminho do paraíso. Desconfiava de que não havia salvação possível. À tarde, íamos ao cemitério. Ficávamos nas redondezas vendendo crisântemos. Os vivos precisam sufocar a saudade dos mortos na pestilência destas flores de beleza duvidosa. Vendia flores e olhava as canelas finas das meninas. Na igreja ou no cemitério, sempre é possível exercitar a devassidão infantil.

Os primeiros porres do início da adolescência aconteceram aos domingos. Já que não conseguíamos vencer a fúria do pai, resolvemos, eu e meu irmão, nos unir a ele na maldição herdada do nosso avô — um homem que caiu morto na rua, com pouco mais de quarenta anos, bêbado feito um porco abandonado. Íamos ao bar com o pai. Ele jogava sinuca, comia rollmops e bebia. Nós ficávamos por ali, jogando nas caçapas as bolas que restavam na mesa. Até hoje sou um razoável jogador de sinuca. E bebíamos pequenos goles de cerveja e de uma mistura de cor indefinível: cachaça com algum licor. Enfim, aos poucos, na entrada da adolescência, já éramos promissores alcoólatras. Afinal, não podíamos decepcionar um pai tão dedicado.

Uma das maiores vergonhas desta época aconteceu num domingo à noite. Em bando, bêbados e arruaceiros, voltávamos da danceteria, onde dançávamos feito pelicanos desengonçados e atirávamos nas entranhas qualquer tipo de bebida. A vida durante a semana seria terrível: do trabalho o dia todo às modorrentas aulas noturnas na escola pública. Precisávamos de grandes alegrias nos domingos à noite. Éramos pouco mais que crianças, esboçando um corpo rumo a uma vida adulta de incertezas. Nada nos detinha na algazarra de um mundo a descobrir. Beber todo tipo de álcool possível nos dava aquela canhestra impressão de uma vida de verdade. Como éramos ridículos naquele tempo. Na volta da danceteria, a rua pareceu entortar mais que o normal. Meu corpo magricelo de pelicano desembestou para a valeta que ladeava o asfalto. Havia chovido durante a semana. Em segundos, mergulhei pernas e tronco na pútrida água. Na beirada, uma horda de hienas a rir da minha desgraça. Minha precoce vida de alcoólatra era uma coleção de pilhérias. Deixaram-me lá e continuaram caminhando, apesar das minhas súplicas. Com muito esforço, venci as encostas da valeta, voltei à rua e segui para casa. Um bêbado-mirim, mas com um lar à espera.

Num domingo à noite, havia uma mulher (não lembro de seu rosto) que me pedia para que apertasse seus seios com força. Eu tinha pouco mais de quatorze anos e já acumulava uma vasta coleção de histórias. Aquela, naquele lugar escuro, no meio de um parque, seria apenas mais uma. A tentativa do sexo perdeu-se numa teia de incertezas. O que realmente aconteceu naquela noite de domingo, após uma longa caminhada até aquele lugar sombrio, numa noite quente? Depois, a longa caminhada até em casa. Tempos depois, fui detido, confundido com um menor de rua, jogado numa sala com várias outras crianças. Lá, passei a noite até a segunda-feira pela manhã, quando teria de rumar para a fábrica de móveis onde trabalhava. Domingos se embaralham: Deus, igreja, crisântemos, cemitério, trabalho, sexo, prisão, porres imensos. Aquele homem gargalhando e jogando dinheiro para mãos famélicas por uns trocados. Aquela zebrinha anunciando os resultados do futebol. Aquele quarteto de humoristas tentando apaziguar uma tristeza indestrutível. Tudo continua acontecendo naqueles domingos.

Nasci num domingo de tempestade.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho