Sapatos de Surfista

Sapatos sem cadarço saem do pé. É preciso amarrá-los com firmeza. Acho que nunca foi moda tirar o cadarço do sapato. Mas não tenho certeza. O mundo da moda sempre me ignorou
Ilustração: Osvalter
15/04/2015

Sapatos sem cadarço saem do pé. É preciso amarrá-los com firmeza. Acho que nunca foi moda tirar o cadarço do sapato. Mas não tenho certeza. O mundo da moda sempre me ignorou. Estou sobre o cavalo de madeira. Meu corpo projeta uma esquálida sombra de apenas cinco anos — um Dom Quixote infantil. Carrego a única fotografia da infância entre os livros que leio. Ela conhece todos os meus segredos. Os livros passam, a fotografia permanece. Ou talvez seja o contrário. Cuido para que não se desintegre. É o único exemplar capaz de comprovar nossa extinção. O inerte cavalo de pelo ralo ampara uma carrocinha cujas rodas são de bicicleta. Minha irmã ocupa o assento de ripas. Tem quatro anos. Meu irmão está em pé ao seu lado — guardião de um tesouro inexistente. Com eles, a sombra se avoluma sobre o chão de terra ressecada. No canto da foto, ramos de guanxuma despontam. Era difícil acabar com as guanxumas que tentavam invadir a casa de madeira. Nossas mãos de criança não davam conta de arrancá-las. Às vezes, uma enxada faz falta. Na foto ainda não tínhamos aprendido a sorrir.

Suponho que trajamos nossas melhores roupas. Eu e meu irmão de calças iguais de tergal azul. A barra é extremamente larga. Quando a mãe sentava à velha Vigorelli — hoje abandonada na casa de madeira cujo fim é alimentar cupins —, tinha o cálculo da necessidade bem definido: bastava ir desfazendo a barra conforme seus filhos deixavam a infância para trás. Ela sabia que não engordaríamos. Crescíamos feito esqueléticos pés de bambu. Nossas calças ostentavam a passagem do tempo nas canelas. As camisetas não combinavam com as calças vincadas e os sapatos sem cadarço. Éramos homens estropiados da cintura para baixo; crianças malvestidas da cintura para cima. Ilustração de livro infantil de quinta categoria. A minha camiseta é azul e branca. A gola está laceada. Hoje, detesto usar camiseta de gola larga. A do meu irmão é branca. Parece bem velha. As calças são novas; as camisetas, velhas. No peito há um surfista. O que faz um surfista perdido a centenas de quilômetros do mar? Desliza por uma onda em direção à barriga magra do meu irmão. O desenho é de um traço bisonho — um espantalho salgando os pés sobre a prancha de mentira. Logo acima do inacreditável surfista, a irônica frase: “As feras radicais”. Não sabíamos ler. Nossos pais muito pouco. Não conhecíamos o mar. Não tínhamos a menor ideia de que existia algo chamado surfe. A ignorância, às vezes, nos salva da ironia do mundo.

De onde vieram aquelas camisetas? Ganhamos? Compramos? Não somos feras radicais. Somos crianças assustadas, tímidas e sérias. As calças são obra da genialidade da mãe. Mas e os sapatos velhos, desbotados no bico, sem cadarços? As meias do meu irmão são vermelhas. Não combinam com o sapato preto e a calça azul. As minhas são azuis. Perfeitas, não fossem os sapatos estropiados. O conjunto: sapato velho, calça nova, camiseta velha. Em sua monstruosidade, o quadro é harmonioso, de uma harmonia risível, em contraste à seriedade das três crianças na fotografia.

Tudo transpira a solidão. Somos apenas nós três e o pangaré imóvel a puxar uma carrocinha. Sobre ela uma futura morta. A menininha de quatro anos não suportou o mundo e morreu aos vinte e sete. Além do chão de terra batida e a intrusa guanxuma, ao fundo uma lasca da casa de madeira, a cerca de frestas obscenas e o portão desbenguelado. Não há mais ninguém no retrato. Nem um cachorro enxerido. Onde está a mãe? Onde está o pai? Não tínhamos animais de estimação. Somente pais. Quem tirou a fotografia?

Hoje, a foto à beira dos trinta e cinco anos está no papel. Quando o lambe-lambe entregou-a a minha mãe, estava aprisionada num pequeno binóculo azul. Ao projetá-lo contra a luz, os filhos presos ao negativo não sorriam. Eu galopava um cavalo imóvel. Desbravava uma terra estéril onde somente a guanxuma sobrevivia. Minha irmã aguardava a morte prematura. Meu irmão não nos protegia de nada. É fácil aprisionar a infância num invólucro vagabundo de plástico. Basta não ter nenhuma outra alternativa.

A praia me espanta. O movimento constante das ondas parece desequilibrar o mundo. Conheci o mar por volta dos doze anos. Na foto, o pai, sem camiseta, segura um cigarro na mão direita. A toalha branca lhe cobre o ombro esquerdo. É a única fotografia que restou daquela viagem ao litoral paranaense. Engraçado, não estamos em lugar algum. Talvez as demais imagens tenham se perdido sobre o guarda-roupa na casa da mãe. Protegemos nossa história das traças em caixas vazias de sapato. São poucas caixas. Da viagem à praia, lembro de que escalamos um barco de pesca vazio. Almoçamos pedaços de frango frito, embalados em pacotes plásticos. A viagem os esfriara. Não havia farofa. Lavamos os dedos sujos de gordura na água de sal. O máximo contato que tivemos. Ninguém se aventurou a entrar naquela imensidão. Molhamos apenas os pés sem sapatos. Ficamos boa parte do tempo sobre o barco imóvel, encalhado — os três irmãos olhando o mar, a quantidade absurda de areia. Era-nos impossível saber como chegamos até ali, como abandonamos o terreiro de guanxumas, o paradeiro do cavalinho de madeira. Onde estariam as calças de tergal e a camiseta do surfista?

Deve ser muito difícil atravessar a areia da praia calçando sapatos sem cadarço.

NOTA
A crônica Sapatos de surfista foi publicada originalmente no Vida Breve (www.vidabreve.com.br).

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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