Quando meu avô matou Collor

Crônica sobre o homem de mãos imensas, olhos azuis e boina
01/03/2009

Sempre que vejo Collor (este ubíquo fantasma a me assombrar) — único presidente escarrado da boca podre que nos governa —, recordo-me de meu avô Sílvio, um homem de mãos imensas, dedos nodosos, esculpidos numa lida sem-fim. Há também uma mulher numa tevê a falar sobre poupança, dinheiro retido, confisco, ou coisa parecida. Naquela época, entendia muito pouco de dinheiro. Tínhamos quase nada. Tempos depois, compreendi que eles também entendiam muito pouco do nosso dinheiro. Mas, aí, já era tarde. Muito tarde.

A notícia chegou-me num dia de inverno no início da década de 1990. “Seu avô morreu: enforcou-se” é a frase que não me abandona. Acompanha-me como uma doença rumo ao túmulo. Naquela juventude, a morte me parecia algo muito distante; a imortalidade era-me possível entre carimbos e jornais na Gazeta Mercantil. Ali, a avalanche desceu das encostas e transformou-se em palavras na boca de um homem de nome Dias. Corri para casa para descobrir pela primeira vez os estragos que a morte é capaz de causar. Nunca mais os esqueci.

(Quando minha irmã morreu, dez anos depois de meu avô, escrevi em algum lugar: Ela [a morte] entrou em minha casa por todas as frestas, escancarou as janelas, varreu os ciscos para os cantos e, silenciosa — como quase sempre o faz —, sentou-se à mesa. Olhou-me nos olhos, virei o rosto, no desespero de espantá-la, de jogá-la na rua, para que tomasse outro caminho. Impossível, logo vi. Não partiria nunca mais. Ficaria como visita em dia de chuva. Sentada no sofá puído, perambulando entre a sala e os quartos, observando-nos nas noites mais do que maldormidas, cortando o resto da carne no prato de bordas gastas. A morte acarinhou-me os cabelos no travesseiro. Ainda me faz companhia nas noites de chuva. Ouço sua voz entre os trovões. Nos relâmpagos, seu rosto ilumina-se. Já não a tememos. É um inimigo conhecido, por mais assustador que possa parecer. Sei que não partirá; sou uma pessoa resignada. Nem a rotina da vida — ora lenta, ora apressada, ora caduca — é capaz de espantá-la. Atracou-se a nossas vidas qual farpa sob a unha da mão delicada. É uma enxurrada lenta e silenciosa a varrer os vãos da casa. Não tem fim.

[…] A morte dói em partes desconhecidas do corpo. E quando voltar — há de voltar, sempre —, descobrirei tantas outras partes a doer.)

Minha mãe era um animal indefeso a grunhir no sofá destroçado num canto da cozinha. Sobre a napa velha, um pano tentava esconder os rombos que uma pobreza escancarava com facilidade. Não vi o seu rosto. Chegavam-me apenas os sons abafados por aquelas mãos imensas de minha mãe. Vi as mãos de meu avô Sílvio fincadas no rosto dela. Daquela boca, cujos dentes não lhe pertenciam, ouvia-se: “nunca mais vou ver meu paizinho”. O diminutivo infantil naquela boca soava-me estranho, deslocado. “Paizinho”? Mas ele era “velho”. Minha mãe era “velha”. Não sei por que imaginava que minha mãe deveria compreender aquela morte. Ela nunca foi muito boa para entender a morte. Descobri por que sempre nos acharam muito parecidos. Meu irmão, com meu pai. Silenciei à espera de que a morte nos desse uma trégua. Nunca mais nos abandonou. Visita-nos de tempos em tempos, a desgraçada.

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Pegou-me no colo. Eu era apenas um menino. Admirava-me aquela boina que levava com certo orgulho. Nada tinha de vaidoso. Acompanhava-o feito um amigo. Onde estará? Lembro-me da boina e dos olhos azuis, uma imensidão inesquecível. Uma das poucas vezes que nos visitara em C. Contava-me histórias. Todas de um mundo arcaico, de uma lavoura arcaica. Passara a vida entre o pasto de bois e as plantações. Era um nômade. Volta e meia carregava a família para um rincão daquela Santa Catarina que inventávamos a cada férias. Alegria visitar a nova morada do avô. Será que tem rio? A pergunta nos tirava o sono no ônibus que nos arrastava rumo a um novo mundo de descobertas. Era a volta a um útero que havíamos abandonado. Agora, éramos urbanos.

No prego, a boina à espera das mãos imensas. Ela o transformava em alguém que eu admirava. Talvez um Mastroianni desajeitado. Quando fui embora de C. por uns tempos, pude usar uma boina igual à do meu avô Sílvio. Ninguém a me dizer que aquilo não combinava comigo. Agora, espero a chegada da velhice para, enfim, resgatá-la. Um dia serei um Sílvio de boina a contar histórias aos netos. Ali, distante de C., quando a morte de meu avô acomodara-se no acúmulo das tristezas familiares, escrevi: “versos sobre a curiosidade: quando cheguei à praça, vi o homem enforcado balançar as pernas no vazio”. Sedimentada para sempre em mim a imensidão entre a sola dos sapatos e o chão um dia cultivado.

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Nós, os católicos, condenamos ao fogo do inferno os suicidas. Mesmo que a Igreja, há algumas décadas, garanta que Deus já não é assim tão severo com aqueles que decidem destruir “o que de mais precioso” Ele nos deu. Depressão, tempos modernos, desespero. Suicídio. Seria muita injustiça aquelas imensas mãos de meu avô Sílvio a cumprimentar o diabo eternamente. E a boina queimaria?

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Depois da morte, a vasta família de meu avô espalhou-se. Uns tornaram-se urbanos; outros teimam em cultivar a terra que assistiu ao corpo no vazio. Minha avó carrega a morte como as pedras no bolso de Virginia Woolf. Mas nunca entrará no rio. É forte demais para se deixar seduzir. Meu avô não foi seduzido, sempre soube. Foi arrastado feito um papel de bala pela enxurrada silenciosa e violenta. Vendera as terras, colocara o dinheiro na poupança que a mulher de voz rançosa na tevê jurava que logo seria devolvido. O logo, para meu avô, transformou-se em eternidade.

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Collor voltou. Está por aí. Tem um site, em cuja página inicial lê-se “pátria amada Brasil”. Não usa mais gel, corre menos, não desfila de jet ski pelo lago, vai fazer 60 anos, dá muitas palestras, carrega a fama de ex-presidente (mesmo que escarrado), a esposa de roupas multicoloridas e sorriso dentuço não o afaga mais o ego, o irmão morreu, um pouco de poder ainda lhe resta como senador da República…

E sempre que o vejo, recordo-me de meu avô Sílvio e tenho mais certeza de que o inferno é aqui.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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