Por onde a morte nos visita? Qual porta tenta escancarar? Que pedaço do corpo vislumbra, cobiça e arrebenta? Que parte de nossos ossos mais lhe interessa? Sempre que visito os cemitérios de C. — esta cidade onde os túmulos se amontoam e os cadáveres tomam água em dia de chuva —, percorro as lápides com interesse de arqueólogo. Busco as datas, os nomes, calculo as idades. Imagino por que reentrância do corpo a morte começou a esculpir o fim. Descarto, sempre, a idéia de que tenha sido de supetão, num susto, num átimo de segundo. Fim. Prefiro o cálculo bem engendrado, o plano perfeito, o ocaso planejado. Por ela, nunca por nós. A morte é a arquiteta perfeita da vida.
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Somos apenas três no papel. Já não me lembro dos demais. Somos apenas três: eu, minha irmã e meu irmão. A única foto da infância. Nascemos ali; morremos todos ali. Os olhares são diferentes. Ninguém sorri. Herdamos de nossa mãe a timidez da boca. Minha irmã, de olhos arregalados, parece adivinhar que a vida logo se esvairia por eles. De onde somos naquela breve manhã? Ao fundo, o portão balança, range no silêncio da casa. O pó entrava farto pelos vãos largos das tábuas, sem qualquer resistência, acomodava-se nos móveis para nunca mais ir embora. Convivíamos bem com a poeira e a vontade de partir. Nossa mãe deixava o pó, penso agora, para criar um aspecto de abandono, de coisa velha, esquecida. Era sua Comala, com vários Pedro Páramo a nos assombrar. Um dia, partimos na cabine do velho caminhão em direção a C., onde os cemitérios são mais bonitos e espaçosos. Nunca mais voltamos. Perdemos a vizinhança, os conhecidos, o vento na folha das árvores, as bicicletas na rua. Ganhamos concreto e uma sensação de que C. nunca acaba.
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Não sei por que a foto na estante me chamou tanto a atenção. Talvez por ter saído da escuridão. Conheci-a ao remexer velhos papéis empilhados sobre o guarda-roupa. Ali, fotos de um tempo que não mais existia. Ou nunca existiu. Meus ancestrais maternos faziam pose de vencedores, acomodados em troncos de árvores, sobre a terra que logo serviria de túmulo. O sorriso forçado ou ingênuo sabia que apenas sobreviveriam, que a terra lhes engoliria um a um. Sem a menor pena ou remorso. Chapéus velhos e roupas gastas tentavam dar alguma dignidade à imagem. Nela, minha mãe é uma criança. Nesta sobre a estante aqui em C., uma jovem bonita, de carnes firmes e pernas fortes. Ela e a irmã lado a lado. O capim roça-lhes os tornozelos. Nada disfarça o fim do mundo. Nenhuma delas sorri.
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Quando chegamos, o caminhão cortou lentamente o asfalto frio da manhã de neblina. Passou por prédios longos, com janelas que pareciam ao alcance dos dedos de Deus. Não conseguia tirar os olhos do céu e seus prédios — a cidade parecia crescer para cima, quando eu achava que deveria expandir-se para os lados. Crescia para onde continua a crescer até hoje: em direção ao infinito. Depois de infindáveis voltas — todas com muito prazer, apesar da cansativa viagem na apertada cabine —, o caminhão começou a reduzir a velocidade e a descer por entre árvores (estaríamos regressando?), por uma estrada pedregosa. No fim da curta rua, a casa, pequena, de madeira, com telhado já gasto pela chuva e uma imensidão de mundo ao seu redor. A nossa nova morada fora feita para nós — o silêncio estava em cada fresta daquela terra de azaléias e samambaias.
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Nossa mãe começou a morrer pela boca. Não notamos. Não tive tempo de argumentar com a morte para que escolhesse outro território. Os cabelos, talvez. Não. Preferiu deixá-la bem visível, por mais que ela (a mãe) esconda os dentes que nunca lhe pertenceram. Vi-a descer de olhos baixos, corpo arrastado por entre as flores que ladeavam a estreita rua de pedras. Nós corríamos a infância no terreiro esburacado. Não notamos nada. A indiferença infantil só tinha olhos para a bola de plástico e os carrinhos improvisados. De tempos em tempos, ela nos deixava sozinhos. Voltava horas depois. Estava mais vazia. Não sabíamos que estava murchando feito as flores que esquecíamos de regar nos dias mais quentes. Dias e dias lhe espetaram anestesias, brocas, ferros, amargura boca adentro. Nós corríamos, corríamos, corríamos. Ela murchava, esvaziava. Naquele dia, notamos.
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Abro a boca e olho os dentes no espelho. São brancos. Falta-me um no fundo, perdido após inúmeras tentativas do dentista. Não teve salvação naquela primeira vez na cadeira do doutor já na adolescência. Antes disso, bastava-nos correr. Nunca nos preocupamos com os dentes. Eles, um dia, seriam uma floresta após a queimada. Éramos animais. Aos animais bastam água e comida.
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Foi neste cenário de flores que os dentes de nossa mãe começaram a perder a brancura. Lembro-me agora: aqueles dentes de uma noite para outra começaram a escurecer, a morrer. Num repente, minha mãe tinha a boca toda negra, de um negrume inesquecível. Seu sorriso, que aos poucos desapareceu por completo, tornara-se tímido, até sumir por entre as avencas. Até o dia em que todos se foram. Aquilo cavoucou em mim uma imensa pena de nossa mãe. Ela voltara menor: lisa boca em corpo de mãos ásperas. Uma terra devastada. Ao fundo, as flores. O sorriso morreu para sempre naquele dia em que a dentadura entrou-lhe no corpo, um ser estranho. Não tinha mais motivos para sorrir. Não mais sorriu, como vemos agora em todas as poucas fotos.
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Do que são feitos os dentes da dentadura? Pertenceriam a outras bocas? De defuntos? Quem carrega a morte pela boca? Tentam me convencer de que são construídos em laboratórios. Não acredito.
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Penduramos dezenas de fotos nas paredes de casa. A casa ganha vida. Nas fotografias, sorrio com devassidão. Não poupo meus dentes da vergonha. Nas fotos, ela não sorri. Passo pelo mural, com minha filha no colo. Seguimos a escovar os dentes. Sobre a pia, um exército de escovas nos espera: diversas cores, de princesa, de bichinho. Digo-lhe: “Abra bem a boca”. Uma brancura infantil ganha vida por entre a espuma. Ao terminar, sempre lhe peço: “Sorria, filha. Quero ver se estão bem branquinhos”. Ela sorri feliz.