A vida que levamos — ao contrário do que muitos pensam, ela nunca nos leva; às vezes nos arrasta, é verdade — impingi-nos a vê-la e a aceitá-la como se apresenta: contrariá-la é arriscado e invariavelmente acarreta na frustração — lugar-comum em nosso cotidiano. Mas para torná-la menos esquizofrênica e tediosa (missão das mais difíceis, para a qual quase nunca encontramos saída), inventamos famigeradas escapatórias, desde as tolas, como chafurdar aos berros em uma igreja, até mesmo as mais prazerosas, como afogar-se num muquifo-boteco em homéricas doses etílicas. É claro que há uma imensidão de outras alternativas, todas vazias e com um poder pífio de nos tirar do caminho traçado: estamos condenados à infelicidade, por mais que os otimistas de plantão (eternos infelizes) gastem seus exíguos suspiros em provar o contrário. Mas talvez a maneira mais sórdida e ao mesmo tempo sublime de buscar a sempre impossível distância do tédio — um sinônimo para todos os males que nos assola — é a penosa tarefa de escrever compulsivamente todos os dias.
(Jornalistas não espraiem-se num riso de soberba, pois o que fazem todos os dias nada mais é que mentir a mentira alheia, sem estilo e sem vida. Um reproduzir mecânico, como o sexo apenas para espalhar mais semelhantes pelo mundo. Falta-lhes a capacidade de fabular, pensar e, acima de tudo, escrever bem: leia-se, com criatividade e sem erros crassos de português, que tanto pululam pelas malfadadas páginas dos jornais). Falo sim do santo-diabólico ato de perder-se pela escrita — seja esta jornalística (não essa que fazemos todos os dias, pois me incluo na horda de famigerados) ou literária; as demais vamos ignorar pela pífia importância que têm, pelo menos para mim.
A similaridade do título deste texto à crônica Por que bebemos tanto assim?, do magistral Paulo Mendes, (O Amor Acaba, Civilização Brasileira, 1999) não é mera coincidência ou falta de criatividade (não a tenho, mas sou um fingidor), é sim uma justa comparação entre o ato de beber e o de escrever. São dois sofrimentos que se equivalem. Escreve Mendes Campos: “[…] Humphrey Bogart, que dizia: ‘“Todo homem está sempre três doses abaixo do normal.” […] Na verdade não é bem isso: bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de um a zero, dois a zero… Bebe-se na esperança de igualar o marcador” (pág. 37). Perder-se pelo labirinto da página em branco ou na frieza da tela do computador é a mesma insólita busca na bebida. Escrevemos — nós escribas oportunistas, desesperados, vaidosos, egocêntricos, tristes, solitários etc. — para empatar com o mundo. Mas como ele é um mostro que nos engole e está sempre em vantagem no marcador, nunca de goleada, mas sempre um gol à frente, para desespero e angústia da torcida: nós mesmos, a frustração é inevitável. Nunca estamos satisfeitos com o nosso desempenho. E por insistirmos, escrevemos sempre, talvez para esquecer o quão inútil é a batalha.
Não é necessário citar aqui os infinitos lugares-comuns que perpetuam entre escritores (medíocres, medianos e grandiosos). Todos têm suas teorias, a maioria infantil, sobre o porquê, a ânsia e o afã de se escrever (bem ou mal). Escreve-se sim para fugir do mundo, pois este tem gente demais, não há mais espaço e, por isso, seres — nem todos podem qualificar-se na categoria humano — tentam levar ao inferno os demais; quanto mais melhor ou quanto menos melhor. Quão tolo é o homem (essa besta encurralada) ao pensar que o nosso fim não é o mesmo!
Bebe-se para estar longe de si mesmo: transformamo-nos quando entramos naquele estado-etílico-maravilhoso em verdadeiros seres risíveis e bestiais, merecedores de pena, esse sentimento medíocre que nos acompanha vida afora. Ali está o melancólico, o apaixonado, o nostálgico, o inquiridor, o sentimental etc. Ao escrever, a metamorfose é similar e tão risível quanto. A diferença, assim como a masturbação, é que vive-se isolado. Beber, bebe-se em grupos (na solidão, só os profissionais dessa arte), como animais selvagem atrás da presa. Escrever, escreve-se na solidão. E por isso, talvez seja mais prazeroso: estar longe da humanidade é estar próximo da felicidade (desculpe-me a rima). Volto ao O Amor Acaba, de Paulo Mendes Campos: “[…] o homem bebe para disfarçar a humilhação terrestre, para ser consolado, para driblar a si mesmo; o homem bebe como o poeta escreve seus versos, o compositor faz sua sonata, o místico sai arrebatado pela janela do claustro, o adolescente adora cinema, o fiel se confessa, o neurótico busca o analista” (pág. 38).
O escriba escreve pelos mesmos motivos. O problema é que com muito menos prazer e mais dificuldade. Cabe ao escriba o porre, a depressão, a humilhação terrestre; mas não tem escolha. Pode beber, sofrer, humilhar-se, contudo, não pode abandonar a escrita, pois apesar dela, pode perder-se para sempre na inutilidade que nos leva a beber, sofrer, humilhar-se e tão-só. Pode-se dizer que escrever é sofrer, como deseja grande parte dos escritores? Não. Escrever não é sofrer, mas sim um prazer insólito, sublime e intocável, muito distante de nós todos. Assim como bebemos tanto, escrevemos tanto porque nos falta muito, ou, ainda, porque já nos resta quase nada.