Por que escrevemos tanto assim?

A vida que levamos — ao contrário do que muitos pensam, ela nunca nos leva; às vezes nos arrasta, é verdade — impingi-nos a vê-la e a aceitá-la como se apresenta
01/10/2000

A vida que levamos — ao contrário do que muitos pensam, ela nunca nos leva; às vezes nos arrasta, é verdade — impingi-nos a vê-la e a aceitá-la como se apresenta: contrariá-la é arriscado e invariavelmente acarreta na frustração — lugar-comum em nosso cotidiano. Mas para torná-la menos esquizofrênica e tediosa (missão das mais difíceis, para a qual quase nunca encontramos saída), inventamos famigeradas escapatórias, desde as tolas, como chafurdar aos berros em uma igreja, até mesmo as mais prazerosas, como afogar-se num muquifo-boteco em homéricas doses etílicas. É claro que há uma imensidão de outras alternativas, todas vazias e com um poder pífio de nos tirar do caminho traçado: estamos condenados à infelicidade, por mais que os otimistas de plantão (eternos infelizes) gastem seus exíguos suspiros em provar o contrário. Mas talvez a maneira mais sórdida e ao mesmo tempo sublime de buscar a sempre impossível distância do tédio — um sinônimo para todos os males que nos assola — é a penosa tarefa de escrever compulsivamente todos os dias.

(Jornalistas não espraiem-se num riso de soberba, pois o que fazem todos os dias nada mais é que mentir a mentira alheia, sem estilo e sem vida. Um reproduzir mecânico, como o sexo apenas para espalhar mais semelhantes pelo mundo. Falta-lhes a capacidade de fabular, pensar e, acima de tudo, escrever bem: leia-se, com criatividade e sem erros crassos de português, que tanto pululam pelas malfadadas páginas dos jornais). Falo sim do santo-diabólico ato de perder-se pela escrita — seja esta jornalística (não essa que fazemos todos os dias, pois me incluo na horda de famigerados) ou literária; as demais vamos ignorar pela pífia importância que têm, pelo menos para mim.

A similaridade do título deste texto à crônica Por que bebemos tanto assim?, do magistral Paulo Mendes, (O Amor Acaba, Civilização Brasileira, 1999) não é mera coincidência ou falta de criatividade (não a tenho, mas sou um fingidor), é sim uma justa comparação entre o ato de beber e o de escrever. São dois sofrimentos que se equivalem. Escreve Mendes Campos: “[…] Humphrey Bogart, que dizia: ‘“Todo homem está sempre três doses abaixo do normal.” […] Na verdade não é bem isso: bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de um a zero, dois a zero… Bebe-se na esperança de igualar o marcador” (pág. 37). Perder-se pelo labirinto da página em branco ou na frieza da tela do computador é a mesma insólita busca na bebida. Escrevemos — nós escribas oportunistas, desesperados, vaidosos, egocêntricos, tristes, solitários etc. — para empatar com o mundo. Mas como ele é um mostro que nos engole e está sempre em vantagem no marcador, nunca de goleada, mas sempre um gol à frente, para desespero e angústia da torcida: nós mesmos, a frustração é inevitável. Nunca estamos satisfeitos com o nosso desempenho. E por insistirmos, escrevemos sempre, talvez para esquecer o quão inútil é a batalha.

Não é necessário citar aqui os infinitos lugares-comuns que perpetuam entre escritores (medíocres, medianos e grandiosos). Todos têm suas teorias, a maioria infantil, sobre o porquê, a ânsia e o afã de se escrever (bem ou mal). Escreve-se sim para fugir do mundo, pois este tem gente demais, não há mais espaço e, por isso, seres — nem todos podem qualificar-se na categoria humano — tentam levar ao inferno os demais; quanto mais melhor ou quanto menos melhor. Quão tolo é o homem (essa besta encurralada) ao pensar que o nosso fim não é o mesmo!

Bebe-se para estar longe de si mesmo: transformamo-nos quando entramos naquele estado-etílico-maravilhoso em verdadeiros seres risíveis e bestiais, merecedores de pena, esse sentimento medíocre que nos acompanha vida afora. Ali está o melancólico, o apaixonado, o nostálgico, o inquiridor, o sentimental etc. Ao escrever, a metamorfose é similar e tão risível quanto. A diferença, assim como a masturbação, é que vive-se isolado. Beber, bebe-se em grupos (na solidão, só os profissionais dessa arte), como animais selvagem atrás da presa. Escrever, escreve-se na solidão. E por isso, talvez seja mais prazeroso: estar longe da humanidade é estar próximo da felicidade (desculpe-me a rima). Volto ao O Amor  Acaba, de Paulo Mendes Campos: “[…] o homem bebe para disfarçar a humilhação terrestre, para ser consolado, para driblar a si mesmo; o homem bebe como o poeta escreve seus versos, o compositor faz sua sonata, o místico sai arrebatado pela janela do claustro, o adolescente adora cinema, o fiel se confessa, o neurótico busca o analista” (pág. 38).

O escriba escreve pelos mesmos motivos. O problema é que com muito menos prazer e mais dificuldade. Cabe ao escriba o porre, a depressão, a humilhação terrestre; mas não tem escolha. Pode beber, sofrer, humilhar-se, contudo, não pode abandonar a escrita, pois apesar dela, pode perder-se para sempre na inutilidade que nos leva a beber, sofrer, humilhar-se e tão-só. Pode-se dizer que escrever é sofrer, como deseja grande parte dos escritores? Não. Escrever não é sofrer, mas sim um prazer insólito, sublime e intocável, muito distante de nós todos. Assim como bebemos tanto, escrevemos tanto porque nos falta muito, ou, ainda, porque já nos resta quase nada.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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