Pito e Gélo

“Aos trinta e nove anos, meu primo desistiu de ter a mesma idade que eu. Cinco tiros são sempre suficientes para mudar o rumo de algumas coisas.”
Ilustração: Hallina Beltrão
01/01/2014

Tínhamos apelidos ridículos: Pito e Gélo. Não éramos amigos. Éramos primos. Nossas mães, irmãs. Entre nossas casas, o corredor de piso bruto — um amontoado de barracos mal-ajambrados, desbeiçados em direção à barroca ameaçadora. Saíramos da roça para um cortiço de fazer inveja a Aloísio Azevedo. Ninguém ali sabia quem era Aloísio Azevedo. Pito tinha os dentes pra frente. Um dentuço risonho com orelhas de abano. Carregou uma chupeta entre os lábios até quase dez anos de idade. A caminho da escola, a escondia no matagal. Na volta, a recuperava. Era um obstinado. Eu suportava na carne a magreza de uma taquara. Fazíamos cabana no mato. Jogávamos futebol na rua de pedras. Éramos mestres em matar passarinhos com bodoques de mira afiada. Uma pedrada e uma pomba gorda na panela. Assassinos infantis sem piedade, dó ou remorso. Queríamos ser jogadores de futebol. Não deu nada certo.

O tio nos levaria ao estádio. Acordamos cedo demais. A manhã se arrastou indiferente a nossa ansiedade. Por volta do meio-dia, ele nos chamou. Em direção ao ponto de ônibus, um menino em cada mão. Eu, na direita; meu primo, na esquerda. Tínhamos a mesma idade em maio de 1983. Hoje, sou mais velho. Aos trinta e nove anos, meu primo desistiu de ter a mesma idade que eu. Cinco tiros são sempre suficientes para mudar o rumo de algumas coisas. O tio era analfabeto. Só sabia assinar o nome, reconhecer números e letras das cartas do baralho. Eu e o primo sabíamos ler. Não nos perderíamos até o estádio ao lado da igreja. Até o Centro, vinte minutos de ônibus. Uma caminhada de mais quinze minutos nos levaria ao coliseu de leões famintos. À entrada, a balbúrdia de carrinhos de pipoca, caixas de isopor com cerveja, água e refrigerante. Os espetinhos de carne, assados em latas vazias de tinta com carvão, empesteavam tudo à volta. Cruzamos a catraca de um estádio de verdade. Milhares de pessoas urrando, atirando para o alto papel picado, sacudindo bandeiras e inventando palavrões. Com muita dificuldade, encontramos um lugar na arquibancada dura de cimento cru.

O tio nasceu na roça, no meio do mato. Não foi à escola. A palavra escrita não lhe diz nada, a não ser quando impressa nas cartas do baralho. Em C., aprendeu a pintar paredes. Uma lata de tinta e um pincel não exigem regência verbal. Ele trouxe a família para a cidade grande no final dos anos setenta. C. é uma cidade grande. O pai também veio. Não havia escolha. O mais importante ao rato é escapar ileso da ratoeira. Em volta da mesa aos sábados à noite, éramos ratazanas exibidas. Os homens enchiam as mãos de cartas e apostavam a dinheiro. Varavam a noite para ganhar ou perder alguns trocados. O cassino doméstico era maltrapilho e servia nada além de café e pinga. A cacheta é um jogo bastante simples, mas requer muita atenção. Não podíamos fazer barulho. Vem cá, tira uma carta pra mim. E vê se dá sorte. O tio sempre nos convocava para comprar uma carta para ele. Me dão sorte, esses meninos. Ele dizia, sem errar a conjugação verbal. Acertava sem querer. Naquele sábado, não nos deixou ficar em torno da mesa. Vão dormir e descansar. Já é tarde. Amanhã, vou levar vocês no campo. Pito e Gélo foram dormir.

Quando cheguei ao cemitério, o tio veio em minha direção. A morte e sua mania de nos aproximar. O sol forte do início da tarde espalha os visitantes pelo amplo pátio diante dos túmulos. A mão sem forças do tio causa-me desconforto no cumprimento. Tivemos de antecipar o enterro. E não diz mais nada. O sol acende pequenas labaredas sobre os jazigos. Ilumina com intensidade nossa insignificância. Abracei-o e disse palavras óbvias. Somos previsíveis na morte. Aos poucos, os parentes começam a surgir. Tios e primos zanzam ao meu redor. O boi doente quando pasta sozinho tem a companhia das moscas. A maioria parece ressuscitar um passado que nunca acaba. Das brincadeiras na rua de trinta anos atrás. Estávamos todos ali, estranhos, calados e sem saber muito bem por quê. O silêncio e a indiferença mútua logo desfazem a aglomeração. Cada um toma o rumo de casa. O morto está enterrado. Dever cumprido. A polícia o cercou por todos os lados — cinco tiros: dois no rosto, dois no peito e um na barriga. Queriam ter certeza da morte. Ainda tínhamos trinta e nove anos quando ele morreu. Agora, tenho quarenta. Ele, nenhum. Nunca falamos sobre aquela ida ao estádio. Nossa primeira vez num estádio de verdade. Jogamos juntos nos campinhos até a juventude. Depois, cada um para o seu lado. Nunca mais voltamos ao estádio juntos. Andamos grudados nas mãos do tio apenas uma vez. Não nos afastamos, mas ele se desviou por algum beco sem muitas saídas. Tomou outros caminhos até ser surpreendido pelos policiais no verão do ano passado.

Naquela época tínhamos apelidos ridículos.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho