Pinheirinhos de Natal

O relato de um menino cuja felicidade, presentes e sentimento de união trazidos pelo Natal eram apenas uma abstração
Ilustração: FP Rodrigues
01/12/2022

Nunca acreditei em Papai Noel. Se existisse, seria um velhote dos mais mesquinhos: jamais se animara a deixar um carrinho de controle remoto sob a árvore inexistente ou aquela sonhada bola de capotão. Tampouco a chaminé do fogão a lenha sufocou seu corpanzil na descida recheada de presentes. Nada disso. Apenas um espasmo de desprezíveis brinquedos nos chegava quando o ano já deitava os últimos dias por trás das flores na chácara onde vivíamos e trabalhávamos para pagar a morada. Ainda sem banheiro, mas com água encanada e luz elétrica — benesses que aos poucos nos transformavam em pessoas urbanas. Invariavelmente, o pai nos dava uns carrinhos de plástico. Na raiva infantil, colávamos chiclete de hortelã mascado e os deixávamos ao sol. Logo, o monstro gelatinoso derretia como num filme de terror. Só nos restava eviscerar o plástico ordinário em busca, quem sabe, de um tesouro. Em poucas horas, nossos carrinhos se transformavam em sucata. Era, talvez, nossa maneira de nos vingarmos da miséria que nos envolvia. Uma vingança besta e inútil.

Mas a chegada do Natal era também uma época de fartura — representada pelo tilintar de moedas que recebíamos com as mãos espalmadas feito um faminto à espera de comida. Entregávamos os pinheirinhos e estendíamos as mãos diminutas de criança. Talvez o espírito natalino e a suposta inocência infantil amolecessem corações e bolsos mais sortudos que os nossos. Não havia escapatória: tínhamos de ajudar o pai a entregar os pinheirinhos vendidos na chácara. Durante o ano, eram plantados e cultivados com método e atenção. Quando o fim de ano se aproximava, tínhamos de arrancá-los com pás afiadas e plantá-los novamente em latas grandes (em geral de tinta). O processo era quase industrial. A fileira de pinheirinhos se espraiava no horizonte à nossa espera. Iriam diretamente para casas luxuosas e grandes. Era necessário um pé direito alto para abrigar a um canto o símbolo da felicidade, da bonança e da sorte de Deus olhar com mais misericórdia para aquele lar. Eram pessoas abençoadas — além de contar com um lindo pinheirinho, que logo seria decorado e receberia caixas e caixas de presentes, podiam nos entregar moedas, com as quais sempre comprávamos pirulitos, chicletes e balas no bar do Gábito — um homem magro, feio, fétido e com um filho orelhudo, cujo apelido era Spock.

Eu adorava elevadores. Quando o pai dizia “é um apartamento”, uma alegria percorria meu corpo magricelo. Gostava da sensação de subir numa caixa de metal em direção ao céu, o corpo no vazio, mas protegido. Nem mesmo minha acrofobia severa — da qual eu ainda nem desconfiava — me tirava a alegria da subida e da descida. Mas naquele dia, o pânico tomou conta de todos nós.

O pai ia na boleia da velha Kombi — uma espécie de pangaré meio cambaio a resfolegar pelas ruas de asfalto de C. Nós, eu e meu irmão, íamos na traseira amparando os pinheirinhos e cuidando para evitar qualquer dano. O toque da pelagem áspera das árvores fustigava e marcava nossa pele. Vivíamos nos coçando feito dois cachorros sarnentos. Quando estacionamos diante do prédio de alto padrão, porteiro com traje de porteiro, muros intransponíveis feito castelos medievais, retiramos com extremo cuidado o imenso pinheirinho. O pai abraçava a lata onde estavam fincadas as raízes, o irmão mais velho ficava no meio da planta a proteger os galhos, eu, o filho mirrado, cuidava da copa onde seria, em geral, colocada uma estrela para iluminar e abençoar o Natal dos afortunados.

Feito Curly, Moe e Larry, íamos a passos de tartaruga prédio adentro, sempre sob o olhar meio irônico dos porteiros. O pobre não é solidário nem no Natal. Neste dia, ao chegar à porta do elevador, a desgraça baixou sobre nós: no manuseio, mesmo que cuidadoso, a copinha do pinheirinho enroscou e, para nosso desespero, quebrou — e ficou a balançar por uma fina película. Uma tragédia completa. Um pinheirinho sem sua amada e desejada copinha era um inválido, um ser desprovido de sua essência. Onde brilharia a estrela a observar a felicidade plena da família a festejar que, sim, o Papai Noel sempre existiu?

Já sentia a mão pesada do pai pregada na minha orelha (afinal, eu era o responsável pela maldita copinha), quando o irmão disse “precisamos dar um jeito”. A ira paterna arrefeceu com a possibilidade de uma solução, mesmo que precária. Mais rápido que um rato a roubar milho no paiol, peguei na Kombi um rolo de durex. Carregávamos de tudo: tesoura, faca, pregos, cola, etc. A vida tinha lá seus percalços.

“Vamos enrolar com durex”, sugeri. Após a delicada cirurgia, colocamos o pinheirinho no elevador e o pai apertou o botão do andar altíssimo do prédio no bairro de C., onde o Papai Noel mais gostava de passear com seu trenó puxado por renas bem alimentadas e saudáveis.

Ao abrir a porta, uma senhora elegante nos sorriu. Sempre me parecera que nos ofereciam um sorriso de pena: começava pelo rosto do pai, descia para meu irmão e terminava em mim, o menor dos três patetas. Entrem, coloquem ali no canto. Era invariavelmente num canto quase maior que a nossa casa. Naquele dia, manuseamos com mais cuidado ainda. Levávamos um pinheirinho doente, fraturado e engessado por durex e pelo desespero. O pai fazia força extrema para evitar que a lata arranhasse o piso de mármore (ou seja lá que pedra fosse) a refletir nosso esforço naquela Ítaca impossível.

Eu observava atento a copinha firme e resiliente —uma solidária comparsa da fraude natalina. Imóvel à espera da estrela. Era impossível não notar as casas, mesmo com o pai nos dizendo o tempo todo “não podemos perder tempo”. Não achava perda de tempo admirar sofás gigantescos, com aspecto fofinho, tevês de tamanho indecente, cadeiras de formatos estranhos, mesas quilométricas, tapetes que sairiam voando a um simples assovio. Às vezes, nos ofereciam água gelada. Às vezes, refrigerante. Mesmo contrariando o pai, aceitávamos todas as oferendas. Em especial, as moedas.

Quando conseguimos deixar o pinheirinho exatamente no local indicado, a senhora nos alcançou copos d’água. E um punhado de balas. Muito obrigado, ficou ótimo, está lindo — ou algo parecido saiu de sua boca um tanto murcha pelo tempo. O pai agradeceu e nos direcionou porta afora. Eu apenas vislumbrei a imensa janela a escancarar um céu azul e muitos outros prédios no horizonte de C.

Possivelmente, seria por aquela janela que Papai Noel entraria sorridente, trenó repleto de presentes para quem se comportou bem durante todo o ano.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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