Os ladrões e a lua

Levaram o carro e deixaram um rastro de escuridão
Ilustração: Raquel Matsushita
29/10/2019

No colo, o rumor da boca provoca o escândalo de uma única palavra. Solitária, parece tão pouco, um ínfimo sussurro, mas constrói a eternidade. É na escuridão da noite que descobrimos o intenso gesto de amor. Somos disformes, inadequados um ao outro. Ela, miúda e delicada. Eu, alto e magro. Combinamos tão pouco. Aponto o negrume do céu. Lá, ao fundo, escancarada, redonda, brilha a estranha luz que tanto a fascina. Preciso ensiná-la algo que escorregará pela língua e se transformará em som. Não sei explicar quase nada sobre a lua. Suas fases dizem pouco a minha surdez astronômica. Sei apenas que homens lá estiveram. Deram alguns passos, protegidos em roupas balofas, estufadas feito lonas de circo lotado. E fincaram uma bandeira. A solidão daquela bandeira estrelada é o símbolo da solidão de todos nós. Da infância, carrego a certeza de minha mãe a jurar que a lua era a casa de São Jorge. Mas por que Deus o mandaria para lá? Para nos proteger, diria a mãe. Agora, sinto (e talvez isso me baste) a importância da respiração breve e compassada que roça minha pele, produzida pelo vazio da boca sem dentes.

O aconchego do carro é uma ilusão. Em C. o final de tarde é igual ao de qualquer grande cidade: zumbis rastejam pelo asfalto em busca do descanso doméstico. O trânsito lento agoniza nas esquinas de faróis descompassados. Nem o cálculo meticuloso de técnicos empenhados é capaz de aliviar o desassossego das almas. A lentidão não me irrita. É fácil se acostumar a quase tudo. Dirijo numa longa fila de camelos cansados sem oásis no horizonte. Nunca haverá água suficiente para matar a nossa sede. No banco traseiro, a pequena M. brinca com os dedos. Parece querer descobrir um tesouro escondido nas unhas. Ou segredos que logo cairão no esquecimento. Uma delicada quiromante de desejos impossíveis. O semáforo nos obriga a parar. Aproveito para olhá-la. M. risca o vidro da janela com o indicador. Desenha um pequeno reino. Ideogramas de um povo esquecido na costa sul do seu reduzido mundo. Olha-me com curiosidade e solta a palavra amor com três letras: lua. Sim, a lua atravessa a cidade. Está lá, gorda a mostrar quanta escuridão existe ao redor. Os vaga-lumes, às vezes, nos comovem.

Desligo o carro. Aquele canto da cidade é silencioso. Pinheiros costeiam o muro que não consegue disfarçar o campo de futebol esburacado e de grama envergonhada. As traves brancas sobressaem na penumbra. A noite encobre tudo. A pouca iluminação, as árvores e um cão magro que passa devagar dão um ar bucólico à cena. A música — um transtorno para L., menino magro e descabelado que finge odiar jazz e blues — cala-se quando tiro a chave da ignição. A pequena quiromante balbucia algo. Articula sons ancestrais. É um animal em busca de uma maneira de ser compreendido. Poucas palavras a habitam. Compensa a mudez com gestos estranhos: uma biruta em dia de vendaval num aeroporto sem aviões.

Abro a porta traseira para retirar M. da cadeirinha. Seu reino é apertado e ocupa muito espaço. Ao lado, a mochila de L. faz companhia a uma pilha de livros. O carro sempre lembra uma biblioteca itinerante. Livros espalhados por todos os cômodos. O tec, barulho quase imperceptível, da trava do cinto de segurança faz M. sorrir. Sabe que a liberdade a jogará no meu colo. Tem menos de dois anos e o equilíbrio das pernas é ainda um grande desafio. Os braços estendidos em minha direção lembram o fiel a pedir um milagre a Deus. Não sou Deus. M. ainda não precisa de milagres.

De repente, as sombras a minha volta. Sombras magras feito os galhos dos pinheiros. As roupas largas parecem esconder cadáveres. Caixões de tecido a percorrer a escuridão. A voz firme talvez escondesse medo e insegurança. O carro. A frase sem verbo estranhamente não me assusta. Queremos o carro. M. no meu colo. L. do lado oposto às vozes. Sem saber de onde tinham saído aqueles dois rapazes (quase meninos), apenas tive tempo de dizer: quero os filhos. Com a pressa de um albatroz abatido em pleno voo, retiro a mochila de L. do banco traseiro. Seguro-o pela mão, abraço M. com todas as forças que jamais desconfiara existir. E atravessamos a rua feito o papa-léguas a fugir do coiote. Nossas rodovias sempre serão um infinito deserto. Na avenida lateral, a fileira de zumbis seguia a solitária sina. O busto da praça mantinha sua altivez de bronze. A noite parecia ainda mais escura. Sem olhar para trás, escuto apenas o ruído agudo dos pneus a rasgar o asfalto. O carro que havia pouco levava um daltônico, um menino magro e uma pequena quiromante, agora desaparece na fuga sem volta. Roubaram nosso carro, diz L., sem expressar medo. Sim, filho, roubaram o nosso carro. M. está grudada ao meu pescoço. Sinto a sua respiração quente e delicada. De repente, ouço como um uivo de um lobo ferido: a lua. Olho para o alto. M. tem razão. A lua está lá grudada no vazio a nos mostrar quanta escuridão existe ao nosso redor.

Não avisto São Jorge. Tampouco a bandeira estrela

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho