Oração

Livrai-nos da cadeira de rodas, da fralda geriátrica, da boca sem rumo em busca das palavras antes tão banais
01/07/2011

Senhor, livrai-nos da morte. Se impossível, livrai-nos, Senhor, das garras do câncer e de sua pá afiada a nos esculpir as vísceras pestilentas. Livrai-nos, Senhor, dos tentáculos das chagas, das pústulas que não pedimos, não imploramos pela escultura improvisada no pâncreas, no fígado, no pulmão, na garganta, nas partes desconhecidas destes que aqui estamos pela Vossa mão. Livrai-nos, Senhor, do estrago vulcânico que nos leva ao Teu encontro ou ao do Teu adversário nas labaredas eternas. Livrai-nos, por clemência deste exército de flagelados, do câncer e de seus médicos, doutores da cura, enlouquecidos na tentativa de evitar a derrota do corpo, a falência das engrenagens. Quase sempre, Senhor, não conseguem deter a erosão nas encostas da nossa frágil carne. E, de repente, a cratera em nós leva-nos a outro território. Olhai por nós, Senhor. Por estes filhos do carbono e do amoníaco.

Livrai-nos, Senhor, dos corredores atulhados, das macas improvisadas, das madrugadas agônicas, monstro de escuridão e rutilância, das sondas a nos arrancar os resquícios de dignidade. Livrai-nos, Senhor, das mãos incompetentes que nos espetam em partes indesejadas. Orai pelos estafetas de médico tagarelas que nada sabem que sofremos desde a epigênesis da infância. Seja no célebre Albert Einstein, seja no muquifo ao lado da rodovia. Olhai por nós, Senhor, quando abandonados ao relento após a radioterapia, sob a influência má dos signos do zodíaco, com a pele em chamas, coberta de vermes a se refestelarem na ausência da Tua intercessão. Mesmo profundissimamente hipocondríaco, este ambiente me causa repugnância. Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia que se escapa da boca de um cardíaco. Senhor, quem são todos estes seres de branco que gravitam ao nosso redor? Anjos ou fantasmas à nossa espera?

Olhai por nós, Senhor, quando o derrame nos alcançar e nos paralisar apenas parte dos movimentos deste corpo — depósito provisório da alma, que em breve será Tua. Livrai-nos, Senhor, do derrame parcial: leva-nos de uma vez ao Teu encontro. Livrai-nos da cadeira de rodas, da fralda geriátrica, da boca sem rumo em busca das palavras antes tão banais. Livrai-nos ainda do infarto, do afogamento no barco precário, das chamas terrenas, das balas perdidas, dos carros embriagados. Livrai-nos, Senhor, de todos os males. Não tenha pressa, Senhor. Leve-nos na paciência da velhice (sem esclerose múltipla). Mas leve-nos de uma vez só, sem paradas, numa viagem rápida e derradeira. Caso contrário, Senhor, deixe-nos por aqui a zanzar feito zumbis na escuridão eterna.

Já o verme — este operário das ruínas —, que o sangue podre das carnificinas come, e à vida em geral declara guerra, anda a espreitar meus olhos para roê-los, e há de deixar-me apenas os cabelos, na frialdade inorgânica da terra! No silêncio, o verme se multiplicará e escavará os dutos pela nossa imobilidade. Limpará o esqueleto de qualquer impureza. E nos restará um sorriso escancarado. A alguns faltarão dentes. Olhai por nós, Senhor, na solidão perpétua do corpo, no descanso eterno de todas as nossas inquietações. Não nos abandone no exíguo espaço entre as flores que logo murcharão. Arraste-nos com a fúria da benevolência para o Teu lado. Guardai, Senhor, um espaço para todos nós.

Olhai por nós, Senhor, na noite escura que se aproxima. Amém.

NOTA: Os versos do soneto Psicologia de um vencido, de Augusto dos Anjos, foram integralmente utilizados nesta crônica, publicada originalmente no www.vidabreve.com.br.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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