Estou na areia a caminho do mar. Nas ondas suaves, avisto minha filha brincando com uma amiga. Duas crianças a escancarar um amor de causar inveja: sem cobranças ou ressentimentos. Divertem-se sob o sol do meio-dia. Tenho a missão de tirá-las das labaredas. O calor promete sapecar a carne ainda frágil e sensível. Sei das dificuldades que me aguardam. Elaboro argumentos contra a costumeira birra. Decido por um simples grito: “Vamos, garotas”. Do marulhar chega-me apenas a indiferença juvenil. Sempre evitei o sol, o mar, a areia. Tríade capaz de derreter cérebros e dissimular olhares. Diante do duplo menosprezo, o desânimo enlaça-me numa previsível indolência. Olho ao redor: a praia semideserta me contempla. Sou uma formiga à beira de um vulcão.
O mar — e tudo o que ele representa — apavora-me desde quando tentei desafiá-lo num fim de tarde de uma juventude a cada dia mais longínqua.
Adentro as ondas envolto pelas mãos brancas, lisas e, sobretudo, jovens e bonitas. A imensidão de cor indefinida aos olhos de um daltônico me assustava quando os pés apenas roçavam a parte mais rasa e ínfima deste Ciclope líquido que tenta abocanhar o mundo. O choro estrangulado, mesmo com a mãe a conduzir-me pelo pulso frágil como a espuma salgada que agora se infiltra por entre os dedos dos meus pés. O pai assistia a tudo sentado tranquilo na areia, indiferente à descoberta do filho de que a morte está sempre à espreita.
Mas agora é diferente. Tenho estas mãos sobre a minha, o que dificulta nossos movimentos. No horizonte, o sol simula um suicídio. O frio faz a pele rejuvenescer, tenta ocultar uma idade inexistente. A velhice ainda não nos preocupa. O vento espalha os cabelos, as ondas roçam nossos corpos. Estão próximas aos joelhos. O frio parece aumentar a cada passo. Na praia, as pessoas batem as toalhas, recolhem os guarda-sóis, tiram a areia do corpo, catam os filhos perdidos entre gritos e correria. Vão para casa pensar no jantar e no resto da noite. As mães sempre são as últimas a deixar as marcas na areia. Caminham atentas aos passos desajeitados dos filhos e aos apressados dos maridos.
Um moleque passa numa bicicleta, empinando uma pipa. Equilibra as duas rodas, o guidão, as mãos no fio e o olhar na bunda da mulher que agora passa os dois braços em volta do meu corpo. Sinto-me orgulhoso e sorrio. O menino — um libidinoso equilibrista — já vai longe, meus olhos o acompanham até que se fecham para sentir a língua quente passeando pelo meu pescoço. O corpo todo se agita. Tudo não passa de um breve instante. A carne arrefece e o vento fica ainda mais frio.
O sol, há algum tempo, afogou-se na linha que divide o mundo. Quietos, olhamos tudo em volta: a praia, um pequeno barco ao longe que parece perdido (mosca pousada numa toalha infinita), as pequenas casas próximas à areia, o mar. Principalmente o mar. Ao mesmo tempo em que me assustam, as águas verdes ou azuis me enchem de uma vontade de descobrir os mistérios escondidos naquela imensidão. Quando criança, apesar do medo, sonhava construir um submarino para viajar o mundo e desvendar a vida entre tubarões, baleias e arraias — um zoológico, cujo guardião era Aquaman. Sonhava com o mar, com peixes enormes me carregando pelas entranhas da terra. Eu, um Ahab a caçar uma Moby Dick em miniatura. Acordava assustado, mas estranhamente feliz.
Hoje, não tenho muito tempo para sonhar coisas esquisitas; multiplico-me em maneiras de tornar a vida menos estranha. Desenho planos em guardanapos. Carrego sempre um guardanapo no bolso direito da calça. Alguns projetos me satisfazem. Mas, às vezes, tenho vontade de descobrir o que existe no fundo do mar. Quando meu filho nasceu, pensei em batizá-lo Netuno. Hoje, um menino espigado e tímido, ele também evita o mar.
Uma curiosidade inunda o corpo e impulsiona os meus pés. E as mãos. Acaricio os lábios dela com a ponta enrugada dos dedos. Beijo-os. São quentes e salgados como a água do mar, que já ronda nossas cinturas. Beijo-a cada vez com mais intensidade e tento caminhar. Dançamos abraçados, em desajeitada harmonia com o balanço das águas. Bailarinos aquáticos. Insanos filhos de Poseidon. O calor de seu corpo é gostoso. No entanto, sinto muita vontade de ter um submarino e viajar longas distâncias. Tento esquecer, encosto os cabelos molhados em seus seios; a água se desprende e rola tranquila rumo ao umbigo da mulher de mãos brancas. Sei que estou fazendo a coisa certa. Ela sussurra qualquer coisa em meu ouvido, faço de conta que não escuto e continuo ali, aninhado.
Já é tarde e ninguém se preocupa mais com as ondas que visitam a praia. Não sei que horas são. Sei apenas que estou sozinho entre a solidão do mar e os seios da mulher de mãos brancas. Sei também que quero descobrir o que existe do outro lado do mundo. Desprendo-me do abraço e caminho com dificuldade em busca do sol, que deixou apenas uma réstia sobre a água. Caminho decidido, sei que vou encontrá-lo. Ouço alguns gritos atrás de mim. Na areia, curiosos. Sinto um gosto salgado invadir a minha boca. Tento voltar, mas tudo é muito difícil. Não faz diferença. Estou a bordo do meu submarino. Rumo em direção ao fim do mundo; vou encontrar o sol, minha mãe e meu pai sorrindo sentados na areia. Enfim, nado a favor das ondas, a imensidão desaparece. Na areia, alguém me espera.
“Papai, você precisa entrar no mar, descarregar a energia negativa”, diz minha filha com uma caricata sabedoria adulta. Na mão direita, um baldinho de plástico amarelo a transbordar. Na esquerda, a amiga. Preciso tirá-las do sol, protegê-las. “Não gosto de praia, não sei nadar”, digo. A frase parece soar como uma piada, um sarcasmo escaldante. O que elas entendem como uma autorização para despejar toda a água sobre um pai de bermuda, camiseta e boné — vestimenta medieval, um verdadeiro ultraje aos corpos nus e tostados esparramados na areia.
Sou uma formiga encharcada à beira de um vulcão. Às vezes, sinto saudade de um submarino que nunca tive.