Para Gilmar Ceccon, in memorian
 A morte tece o silĂȘncio na escuridĂŁo do quarto. Enrosco-me Ă s cobertas, sufoco o travesseiro na Ăąnsia de afastĂĄ-la. Nas fibras dos tecidos me debato na angĂșstia de uma imensa tristeza inesperada. No fim da tarde, as palavras (sempre elas) chegaram impressas na frieza digital de uma mensagem: ele havia morrido. O soco em forma de letras estraçalhou o pequeno baĂș de recordaçÔes. E nem ao menos chegamos a conversar pessoalmente. ApĂłs vinte e um anos de convivĂȘncia, ele estava morto. E eu tinha apenas o timbre da sua voz a preencher cada centĂmetro das minhas lembranças.
Ă uma histĂłria inusitada. No inĂcio do milĂȘnio, decidi criar um jornal de literatura. Precisava montar uma empresa, um registro de pessoa jurĂdica. Afinal, seria um risĂvel empresĂĄrio. Um amigo indicou-me o contador, um bancĂĄrio que cuidava das burocracias fiscais do condomĂnio de seu apartamento na praia. No primeiro contato telefĂŽnico, o som das letras a emendar palavras denunciou uma certa proximidade: um descendente de italianos seria o meu contador. E, com o tempo, o amor pelos livros fortaleceu uma amizade feita de delicadezas e risadas breves, sempre com o olhar Ă esquerda.
Ăramos unidos por outra morte: a do meu avĂŽ. JĂĄ escrevi sobre isso mais de uma vez â o suicĂdio do meu avĂŽ materno, um italiano de mĂŁos grandes e afetuosas. Dizem que escrevo sempre sobre a mesma coisa o tempo todo. Um martelar constante, monocĂłrdico, meio enfadonho, aborrecido. Pode ser verdade. Escrevo e reescrevo atĂ© aprender que as palavras nĂŁo servem para lembrar.
Sim, jĂĄ escrevi antes sobre a tragĂ©dia familiar. Na Ășltima vez, muita gente leu porque um jornalista famoso espalhou o texto entre seus leitores. AĂ, sim, a morte do meu avĂŽ ganhou vida, certa fama. Mas nĂŁo escrevo para a fama; escrevo para outra coisa que nĂŁo sei muito bem o que Ă©. Enfim, um resumo: meu avĂŽ se enforcou. Aquela histĂłria conhecida: anos 1990, plano Collor, poupança retida, dĂvidas, corda, pescoço, morte. EntĂŁo, escrevi: âO corpo balançando no vazio da cordaâ. Sim, vocĂȘ jĂĄ leu esta frase em outro texto. Mas Ă© isso: escrevo de novo. E de novo. E de novo. AtĂ© o infinito. Tento, talvez, competir com a morte, vencĂȘ-la. Sou um ingĂȘnuo a guerrear com fantasmas.
Escrevo, na verdade, para esquecer. Repito tanto as mesmas histórias para que desapareçam na trivialidade dos dias, das palavras (sempre elas).
Mas por que o avĂŽ pendurado pelo pescoço numa ĂĄrvore, a longa distĂąncia dos pĂ©s atĂ© o chĂŁo de terra batida, nos unia? Nada de muito espetacular, assim como deve ser a vida. Ele leu o texto e foi atrĂĄs de histĂłrias dos meus antepassados italianos. Tinha como hobby muito sĂ©rio pesquisar a colonização italiana no Brasil. Sempre o imaginei um homem parecido com meus tios soterrado por nĂșmeros, cĂĄlculos, Ăndices e histĂłrias. Um homem de bom coração. Ligou-me animado: âLi seu texto e descobri vĂĄrias coisasâ. Ficamos longo tempo ao telefone â como fazĂamos com frequĂȘncia â a contar histĂłrias. Ăramos movidos pelas palavras que nos construĂam. ApĂłs inĂșmeras pesquisas, entregou-me um recorte dos meus ancestrais no sul â um povo sofrido e com algumas tragĂ©dias familiares. Ou seja, uma famĂlia comum. Tenho guardados todos os documentos que ele gentilmente me enviou. Sem saber, dilatou um pouco mais a minha pequena existĂȘncia.
Sem dĂșvidas, Ă©ramos homens antiquados e reservados. Talvez dois tĂmidos. Em vinte e um anos de amizade nunca nos encontramos, nunca vi uma foto sua, nunca acessei suas redes sociais. Assim como eu, talvez nĂŁo tivesse nenhuma existĂȘncia digital. Mas, por mais estranho que pareça, mantĂnhamos uma sĂłlida amizade a distĂąncia. Interessava-nos construir a proximidade pelo som das palavras e seus significados.
A ironia tambĂ©m nos uniu. Pouco tempo antes de morrer, planejamos finalmente um encontro: ele pretendia escrever um livro a respeito das pesquisas acumuladas. âTĂŁo logo passe esse infernoâ, eu lhe disse. Ele animadamente respondeu: âTemos muito assunto para colocar em diaâ. Eu o ajudaria na construção da narrativa, sem que ele imaginasse que estava me ajudando a ser eu mesmo. Lembro do som da voz, uma voz inconfundĂvel, o contorno das letras, carregadas com um timbre que me acompanha no silĂȘncio das horas. O inferno ainda nĂŁo passou. A morte o arrastou de repente, em poucos dias estava morto. Agora, um silĂȘncio estrondoso invade o cotidiano agĂŽnico que nos cerca.
Naquela tarde, mandei uma mensagem prosaica: precisava com certa urgĂȘncia de uma nota fiscal. Ele, na gentileza que o acompanhava, respondeu: âEstou com suspeita de covid e tive de vir fazer uns exames no hospitalâ. Disse-lhe que nĂŁo se preocupasse com a burocracia e que cuidasse da saĂșde, como se isso fosse possĂvel apĂłs a invasĂŁo do corpo por este sĂłrdido vĂrus que nos arranca histĂłrias, pessoas, afetos. âVamos ficar na luta. Vamos torcer pra coisa nĂŁo complicar. Vou te avisandoâ, ele respondeu. O âvamosâ chamou minha atenção: mais uma vez, ele usava as palavras para nos aproximar. Como se dissesse âtorce por mimâ. E eu torci, como torci naqueles desgraçados dias que se sucederam.
Mas logo depois ele morreu. Pouco mais de sessenta anos, saudĂĄvel, cheio de planos e com um encontro no meio do caminho. Morreram ele e o irmĂŁo. Uma morte inesperada, violenta, inesquecĂvel. Recebi a mensagem: ele morreu. A frieza da palavra morte a confirmar nosso inevitĂĄvel destino.
Ă noite, arrastei as cobertas sobre o corpo magro. A revolta da insĂŽnia escancarava as garras. NĂŁo via a geografia de um rosto, mas a caligrafia de uma voz. A escuridĂŁo do quarto a abrigar a voz que me fez companhia durante duas dĂ©cadas, contou-me histĂłrias (e como as valorizo), ampliou minhas origens. O som da amizade revoluteou noite adentro, entranhou-se em meu corpo. Na luta entre a vida e a morte, restou a inconfundĂvel sinfonia da voz que desenhava na breve distĂąncia a enorme amizade.
O som de algumas palavras, Ă s vezes, nunca nos abandona.