🔓 O silĂȘncio da voz

A morte o arrastou de repente, em poucos dias estava morto; agora, um silĂȘncio estrondoso invade o cotidiano agĂŽnico que nos cerca
Ilustração: Marcos Tavares
01/06/2021

Para Gilmar Ceccon, in memorian

 A morte tece o silĂȘncio na escuridĂŁo do quarto. Enrosco-me Ă s cobertas, sufoco o travesseiro na Ăąnsia de afastĂĄ-la. Nas fibras dos tecidos me debato na angĂșstia de uma imensa tristeza inesperada. No fim da tarde, as palavras (sempre elas) chegaram impressas na frieza digital de uma mensagem: ele havia morrido. O soco em forma de letras estraçalhou o pequeno baĂș de recordaçÔes. E nem ao menos chegamos a conversar pessoalmente. ApĂłs vinte e um anos de convivĂȘncia, ele estava morto. E eu tinha apenas o timbre da sua voz a preencher cada centĂ­metro das minhas lembranças.

É uma histĂłria inusitada. No inĂ­cio do milĂȘnio, decidi criar um jornal de literatura. Precisava montar uma empresa, um registro de pessoa jurĂ­dica. Afinal, seria um risĂ­vel empresĂĄrio. Um amigo indicou-me o contador, um bancĂĄrio que cuidava das burocracias fiscais do condomĂ­nio de seu apartamento na praia. No primeiro contato telefĂŽnico, o som das letras a emendar palavras denunciou uma certa proximidade: um descendente de italianos seria o meu contador. E, com o tempo, o amor pelos livros fortaleceu uma amizade feita de delicadezas e risadas breves, sempre com o olhar Ă  esquerda.

Éramos unidos por outra morte: a do meu avĂŽ. JĂĄ escrevi sobre isso mais de uma vez — o suicĂ­dio do meu avĂŽ materno, um italiano de mĂŁos grandes e afetuosas. Dizem que escrevo sempre sobre a mesma coisa o tempo todo. Um martelar constante, monocĂłrdico, meio enfadonho, aborrecido. Pode ser verdade. Escrevo e reescrevo atĂ© aprender que as palavras nĂŁo servem para lembrar.

Sim, jĂĄ escrevi antes sobre a tragĂ©dia familiar. Na Ășltima vez, muita gente leu porque um jornalista famoso espalhou o texto entre seus leitores. AĂ­, sim, a morte do meu avĂŽ ganhou vida, certa fama. Mas nĂŁo escrevo para a fama; escrevo para outra coisa que nĂŁo sei muito bem o que Ă©. Enfim, um resumo: meu avĂŽ se enforcou. Aquela histĂłria conhecida: anos 1990, plano Collor, poupança retida, dĂ­vidas, corda, pescoço, morte. EntĂŁo, escrevi: “O corpo balançando no vazio da corda”. Sim, vocĂȘ jĂĄ leu esta frase em outro texto. Mas Ă© isso: escrevo de novo. E de novo. E de novo. AtĂ© o infinito. Tento, talvez, competir com a morte, vencĂȘ-la. Sou um ingĂȘnuo a guerrear com fantasmas.

Escrevo, na verdade, para esquecer. Repito tanto as mesmas histórias para que desapareçam na trivialidade dos dias, das palavras (sempre elas).

Mas por que o avĂŽ pendurado pelo pescoço numa ĂĄrvore, a longa distĂąncia dos pĂ©s atĂ© o chĂŁo de terra batida, nos unia? Nada de muito espetacular, assim como deve ser a vida. Ele leu o texto e foi atrĂĄs de histĂłrias dos meus antepassados italianos. Tinha como hobby muito sĂ©rio pesquisar a colonização italiana no Brasil. Sempre o imaginei um homem parecido com meus tios soterrado por nĂșmeros, cĂĄlculos, Ă­ndices e histĂłrias. Um homem de bom coração. Ligou-me animado: “Li seu texto e descobri vĂĄrias coisas”. Ficamos longo tempo ao telefone — como fazĂ­amos com frequĂȘncia — a contar histĂłrias. Éramos movidos pelas palavras que nos construĂ­am. ApĂłs inĂșmeras pesquisas, entregou-me um recorte dos meus ancestrais no sul — um povo sofrido e com algumas tragĂ©dias familiares. Ou seja, uma famĂ­lia comum. Tenho guardados todos os documentos que ele gentilmente me enviou. Sem saber, dilatou um pouco mais a minha pequena existĂȘncia.

Sem dĂșvidas, Ă©ramos homens antiquados e reservados. Talvez dois tĂ­midos. Em vinte e um anos de amizade nunca nos encontramos, nunca vi uma foto sua, nunca acessei suas redes sociais. Assim como eu, talvez nĂŁo tivesse nenhuma existĂȘncia digital. Mas, por mais estranho que pareça, mantĂ­nhamos uma sĂłlida amizade a distĂąncia. Interessava-nos construir a proximidade pelo som das palavras e seus significados.

A ironia tambĂ©m nos uniu. Pouco tempo antes de morrer, planejamos finalmente um encontro: ele pretendia escrever um livro a respeito das pesquisas acumuladas. “TĂŁo logo passe esse inferno”, eu lhe disse. Ele animadamente respondeu: “Temos muito assunto para colocar em dia”. Eu o ajudaria na construção da narrativa, sem que ele imaginasse que estava me ajudando a ser eu mesmo. Lembro do som da voz, uma voz inconfundĂ­vel, o contorno das letras, carregadas com um timbre que me acompanha no silĂȘncio das horas. O inferno ainda nĂŁo passou. A morte o arrastou de repente, em poucos dias estava morto. Agora, um silĂȘncio estrondoso invade o cotidiano agĂŽnico que nos cerca.

Naquela tarde, mandei uma mensagem prosaica: precisava com certa urgĂȘncia de uma nota fiscal. Ele, na gentileza que o acompanhava, respondeu: “Estou com suspeita de covid e tive de vir fazer uns exames no hospital”. Disse-lhe que nĂŁo se preocupasse com a burocracia e que cuidasse da saĂșde, como se isso fosse possĂ­vel apĂłs a invasĂŁo do corpo por este sĂłrdido vĂ­rus que nos arranca histĂłrias, pessoas, afetos. “Vamos ficar na luta. Vamos torcer pra coisa nĂŁo complicar. Vou te avisando”, ele respondeu. O “vamos” chamou minha atenção: mais uma vez, ele usava as palavras para nos aproximar. Como se dissesse “torce por mim”. E eu torci, como torci naqueles desgraçados dias que se sucederam.

Mas logo depois ele morreu. Pouco mais de sessenta anos, saudĂĄvel, cheio de planos e com um encontro no meio do caminho. Morreram ele e o irmĂŁo. Uma morte inesperada, violenta, inesquecĂ­vel. Recebi a mensagem: ele morreu. A frieza da palavra morte a confirmar nosso inevitĂĄvel destino.

À noite, arrastei as cobertas sobre o corpo magro. A revolta da insĂŽnia escancarava as garras. NĂŁo via a geografia de um rosto, mas a caligrafia de uma voz. A escuridĂŁo do quarto a abrigar a voz que me fez companhia durante duas dĂ©cadas, contou-me histĂłrias (e como as valorizo), ampliou minhas origens. O som da amizade revoluteou noite adentro, entranhou-se em meu corpo. Na luta entre a vida e a morte, restou a inconfundĂ­vel sinfonia da voz que desenhava na breve distĂąncia a enorme amizade.

O som de algumas palavras, Ă s vezes, nunca nos abandona.

Rogério Pereira

Nasceu em GalvĂŁo (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol LiterĂĄrio. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca PĂșblica do ParanĂĄ. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na FinlĂąndia. É autor dos romances Antes do silĂȘncio (2023) e Na escuridĂŁo, amanhĂŁ (2013, 2ÂȘ edição em 2023) — finalista do PrĂȘmio SĂŁo Paulo de Literatura, menção honrosa no prĂȘmio Casa de las AmĂ©ricas (Cuba) e traduzido na ColĂŽmbia (Babel Libros) — e da coletĂąnea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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