O rangido estridente da porta escancara a silhueta delicada, quase quebradiça, afundada — sem perder certa dignidade solene — no sofá iluminado pela réstia de luz que escapa da janela entreaberta. Após uma sucessão de informações tortas e, muitas vezes, sem sentido algum, ali está o homem que procurei desesperadamente durante vários dias: o escritor Jean-Paul Levy Rigaut.
Antes de desvendar, por mais inocentes quem sejam os contornos desta palavra no caso de Rigaut, alguns traços da figura peculiar e estranha que ocupa o apartamento úmido e sombrio na Rua Saldanha Marinho, no Centro de Curitiba, é preciso explicar como cheguei até ali.
A chuva não deu trégua durante os quatro dias em que estive em Ouro Preto para um encontro sobre jornalismo cultural. Com a timidez protegida por uma mesa enorme, eu falava para uma reduzida mas atenta platéia sobre a proximidade e a distância entre jornalismo e literatura. Um assunto banal. Olhares de espanto e risinhos camuflados me diziam que eu não passava de um desajeitado espantalho a grunhir alguma teoria manca. Um silêncio incômodo instalou-se na sala quando resolvi discorrer sobre a secreta “Sociedade Portátil”, criada na França no início da década de 1920 e cujos integrantes se denominavam shandys, em homenagem ao Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Noto que a mulher da última fileira espreme o olhar por trás dos óculos de aros grossos. Era como se quisesse ouvir com os olhos. Cúmplice das minhas obsessões, acompanha cada palavra. Para encerrar, relato o trágico fim da “Sociedade Portátil”: uma conspiração do satanista Aleister Crowley a fez desaparecer da face da Europa.
Ao descer do altar protetor, a mulher estendeu-me a pequena e suada mão e disse num francês suave e pausado: “Surpreendente”. O que é surpreende?, devolvi no francês capenga aprendido nos confins da infância. Sem se dar ao trabalho de responder ou apresentar-se, a mulherzinha de poucos centímetros arrastou-me em direção ao café do auditório e falou durante mais de uma hora a respeito do seu interesse pela “Sociedade Portátil”. Ao fim, a surpresa: estendeu-me o cartão em que brilhavam a logomarca do jornal Le Figaro, seu nome e o cargo de editora de Cultura. Em seguida, ela falaria sobre o panorama do jornalismo cultural na Europa para uma platéia deslumbrada com o eurocentrismo. Antes de se despedir, avisou: “Tenho uma missão para você”. Sem esperar qualquer reação, dirigiu-se a sua palestra.
O mundo parecia uma grande piada. E eu estava no centro dela. Nada dava certo. A cada telefonema, um novo equívoco. O e-mail era incisivo: “Ele mora em Curitiba há vários anos. Basta encontrá-lo e escrever um perfil”. A pauta do Le Figaro era por demais sedutora: um perfil de um escritor velhinho em troca de um bom dinheiro. Além disso, teria meu nome cravado para sempre nas imortais páginas de um jornal europeu. Que luxo! Logo após nosso encontro na chuvosa Ouro Preto, a editora do Figaro não me deixou em paz. Enviava-me e-mails diários sobre a “Sociedade Portátil”. Estava obcecada. Até o dia em que citou Jean-Paul Levy Rigaut. Diante da minha ignorância (no Google há poucas referências a ele), enfureceu-se. O silêncio durou três dias. Voltou à carga com a pauta irrecusável. Ela jurava que Rigaut tinha a ambição de ressuscitar a sociedade dos shandys. Só não dizia de onde tirara tanta certeza. Era necessário entrevistá-lo o quanto antes, pois já ultrapassara os 90 anos e, segundo Marie Claire, a editora hiperativa e míope, “nesta fase, a vida se transforma em areia”. Não entendi o sentido da frase, mas evitei o confronto.
Jean-Paul Levy Rigaut é, sem dúvida, o mais estranho dos escritores franceses. E olha que a concorrência é pesada. É um dos autores citados por Enrique Vila-Matas no romance Bartleby e companhia, que trata de autores que pelos mais diversos motivos abandonaram a literatura. Logo após combater na Segunda Guerra Mundial, Rigaut publicou o seu único livro: A bicicleta azul, um engenhoso e angustiante romance com três finais possíveis. Em todos eles, não há espaço para salvação, redenção ou otimismo em relação à vida adulta. No início da década de 1950, antes de completar 30 anos, era lido e comentado pela intelectualidade européia como o autor mais talentoso de sua geração. “Um gênio”, exageravam alguns críticos. No Brasil, uma tímida edição da antiga Editora Globo não conseguiu dar à luz o talento de Rigaut. Passou despercebido por leitores e críticos. Wilson Martins dedicou-lhe um breve ensaio, mas sem qualquer ressonância. No auge precoce em quase toda a Europa, Rigaut sofreu o inusitado acidente cuja foto estampa a capa dos jornais franceses daquela manhã de 21 de janeiro de 1953. Exatamente 20 anos antes do meu nascimento. Mera coincidência. Na foto, vê-se a massa disforme pendurada ao fim do braço do escritor. No lugar de uma mão, um bolo de sangue e carne. As reportagens da época não esclareceram muito bem como a bicicleta de Rigaut fora parar aos pedaços debaixo do caminhão de mudanças, cujo pneu estraçalhou a mão direita do escritor.
Diante de Rigaut na sala penumbrosa, estendo a mão mecanicamente em um cumprimento que logo se transforma em agonia e desespero. Ele me retribui o braço direito, um bastão seco, um galho de árvore retorcido, um osso, quase uma aberração. Sem saber o que fazer, aperto-lhe o antebraço com força exagerada. Mas sinto a mão fantasma acariciar a ponta dos meus dedos.
Após o acidente, Rigaut abandonou a literatura, escondeu-se da imprensa e dos leitores. Em 1960, solteiro e praticamente esquecido, deixou a França em direção ao Uruguai. Em Montevidéu, fez amizade com Mario Benedetti, com quem jogava xadrez todas as manhãs. Benedetti o estimulava a voltar a escrever. Recebia em troca a frase definitiva: “La mejor manera de escribir es no escribir. Mejor no”, num espanhol que beirava à perfeição. Nos anos 1970, mudou-se para Buenos Aires. Admirador de Borges, jamais entrou no Café Tortoni. Viveu nas sombras da Calle de Mayo até mudar-se definitivamente para Curitiba em 1983.
Durante os cinco dias que o entrevistei, Rigaut não disse por que escolhera a cidade para terminar a vida. Obviamente, a informação de que tinha a intenção de ressuscitar a “Sociedade Portátil” não passava de um pequeno equívoco. A cada encontro, eu via o perfil para o Figaro virar um relato desprovido de qualquer sentido. Rigaut se recusava a falar sobre a vida literária, o sucesso de A bicicleta azul, o trágico acidente, o abandono da literatura, a fuga para o Uruguai. Nada. Dizia que conseguia lembrar apenas de alguns fatos do passado, a maioria relacionada com a Segunda Guerra Mundial. Sua memória recente sustentava-se durante poucas horas. Em seguida, o esquecimento e as lembranças da guerra tomavam conta de tudo. Da cozinha, a voz metálica sempre a dizer: “Eu cuido dele”. A mulher que o amparava nos últimos dias de vida era uma alemã com pouco mais de 40 anos. “Sou enfermeira e sei o que faço”, dizia com uma freqüência irritante.
Antes de sair, uma fotografia. Exigência dele. Era preciso tirar uma fotografia, reproduzir e entregá-la no encontro seguinte. Com isso, ele tinha certeza de que eu estivera ali no dia anterior. Uma esquisitice necessária que contava com a cumplicidade da enfermeira alemã. Tenho comigo as cinco fotografias. Em todas elas, ninguém sorri. Ele trancado em seu silêncio; eu, em minhas dúvidas. Nunca escrevi o perfil para o Figaro. Deixei de responder aos e-mails de Marie Claire. Agora, sempre que retiro da gaveta o livro em que trabalho há vários anos, obrigo-me a ler a enigmática frase escrita por Jean-Paul Levy Rigaut, com letra microscópica e trêmula, no verso de uma das fotografias: “A melhor maneira de escrever é não escrever”.
Aos 93 anos, Jean-Paul Levy Rigaut morreu na semana passada.