Naquela época, eu não tinha um quarto. Dividia o beliche rangente com meu irmão mais velho — dois meninos magros, compridos e meio tristes a masturbar-se na tentativa ridícula e envergonhada de consolidar uma precoce vida adulta. Éramos dois irmãos cuja irmandade nunca significou absolutamente nada. Tampouco, tínhamos um quarto. A cama coletiva — espécie de conjunto habitacional noturno — atravancava o meio do caminho até o quarto dos nossos pais. Era um purgatório, com o inferno nas duas extremidades, sem nenhuma expectativa de avistarmos o céu, o paraíso e seus querubins de mentira. Deus sempre foi um impostor a tecer palavras vazias na boca banguela de nossa mãe. O vazio das palavras só nos entregava uma raquítica esperança de que é possível domesticar a fúria, conter a ira e adestrar o ódio. Ao fim, descobrimos que a única possibilidade seria nos acostumarmos, até o dia do juízo final, sob o olhar de um Deus mesquinho, cuja generosidade valia menos que uma bala de hortelã gosmenta.
Os grunhidos de enxofre vinham do pai — sempre bêbado, o corpo azedo, a boca pútrida —, que roncava noites inteiras aquela vida miserável. A mãe, agarrada a crucifixos e a inúteis orações, tentava amainar o ímpeto do demônio, que tanto prazer sentia em nos chutar e esmurrar bestialmente. Nossas noites eram veladas por fantasmas de carne e osso.
Era fácil odiar aquela vida: logo cedo, a marmita na bolsa falsificada da escola privada, eu despencava em direção à fábrica de móveis — uns móveis de bambu, feios, frágeis, que enganavam compradores desavisados nas lojinhas no bairro de C. onde, até hoje, restaurantes de comida italiana — aquela pasta gordurenta e quase asquerosa — ainda enganam turistas sorridentes. O cigarro no bolso da calça. Os pés serelepes no pedal da bicicleta sem freios, uma geringonça pronta a esmigalhar meu raquítico corpo na curva que dava para o belo e pacífico parque, onde mulheres de bundas torneadas no mármore corriam alegres como se a vida fosse eterna. Todo idiota corre sorrindo. Depois da jornada de trabalho, a escola pública noturna me esperava com sua completa incapacidade de ensinar qualquer coisa. Ao retornar a casa, aguardavam-me uma marmita morna no forno do fogão à lenha, o beliche molenga, a masturbação apressada e o demônio a roncar ao lado.
Éramos meninos-homens: eu e meu irmão fumávamos e bebíamos no bar em companhia de homens fedorentos, de corpos maltratados pelo trabalho pesado, de semblantes tristes e furiosos. Havia muita fúria e desespero naquela gente. Nosso pai sempre estava ali a nos dar um bom exemplo: bebia, fumava e jogava bilhar. Eu e meu irmão fumávamos, bebíamos e jogávamos bilhar. Já que o inimigo se mostrava invencível, o melhor mesmo era fazer um afago em suas guampas. Para completar, muitas vezes, chegávamos bêbados em casa e vomitávamos golfadas generosas no banheiro, sob o olhar piedoso da mãe. Talvez ela acreditasse que estivesse cultivando entre vômitos e pontapés um lugarzinho ao lado de Deus.
(Na madrugada, a frase cortou a escuridão, acertou-me em todas as partes do corpo e levou-me novamente ao inferno. De onde nunca saí.)
Eu precisava cavar. A nossa casa — de madeira, um tanto frágil e à mercê dos cupins — fora construída num terreno em declive. Na parede lateral da cozinha, havia uma possibilidade de se construir um quarto. Não era tarefa simples, mas livrar-se dos grunhidos do pai valia qualquer esforço. Nas férias do trabalho e da escola, com um picão afiado, transformei-me em um dedicado tatu. Durante dias, minhas garras de menino cavoucaram com ânimo e ferocidade. Num carrinho de mão, transportava a terra retirada. Após alguns dias, um vão surgiu no solo úmido. Ali, seria construído o meu quarto. O pai, sem imaginar que estava arquitetando minha fuga do inferno, contratou dois pedreiros. Em pouco tempo, um exíguo retângulo, com uma janela diminuta, transformou-se em meu quarto. Sem dúvida, uma das maiores alegrias desde sempre.
(Na escuridão, entre as cobertas, a frase seca, cortante, invade todo o quarto. Agora, muitos anos depois, não sou mais aquele menino, mas um homem em permanente batalha. A frase desdobra-se em significados: todos insuportáveis, decepcionantes, agônicos.)
Ali, comecei uma nova vida. Empilhei os primeiros livros numa improvisada estante. Aos poucos, muitos livros começaram a tomar o quarto — a invasão sonhada. Uma pequena mesa encostou-se à parede. A umidade era imensa, infestava as cobertas, o guarda-roupa, os livros. Nem as labaredas vindas da boca do pai eram capazes de arrefecer a sanha da água. Mas eu estava protegido. Nas noites de bebedeira, ouvia apenas um ronronar vindo do quarto na outra extremidade da pequena casa. Meu irmão ficara com todo o complexo habitacional do beliche. Podíamos nos masturbar sem qualquer constrangimento. Enfim, éramos homens livres da vergonha mútua.
Passei muitos anos naquele quarto, lendo, desenhando, sonhando, escrevendo. Era uma espécie de bunker. Mas até o inferno muda, consegue ficar ainda mais diabólico. Um dia, o pai foi embora. Minha irmã morreu. A mãe adoeceu de câncer. Mais tarde, também parti. Afinal, não era mais um menino-homem. Deixei o quarto ao meu sobrinho. E, uma certa manhã, após sonhos intranquilos, ele encontrou-se naquele quarto metamorfoseado num traficante. Cada vão preenchido por papelotes de cocaína, LSD (ou algo similar), crack e maconha. Era um menino assustado, órfão de mãe e abandonado pelo pai antes do nascimento. Uma presa fácil para o tráfico. Em pouco tempo, transformou-se em um eficiente auxiliar do principal traficante do bairro, cujo apelido referia-se a um legume, algo que sempre me pareceu demasiado ridículo para um bandido.
(Naquela noite, você entregou-me apenas escuridão.)
Quando entrei novamente naquele quarto que eu, literalmente, cavara com as mãos, encontrei um menino envolto em desespero. No chão, sobre a ex-estante de livros, nos cantos, todo tipo de droga e notas de dinheiro, um dinheiro miúdo, sujo, amassado. O quarto rescendia a abandono. Havia ali um pedido de socorro. Por várias razões, eu era o único capaz de salvá-lo. Empunhei balde, vassoura e material de limpeza. Com desmedida ânsia, limpei toda aquela terrível história, sob o olhar assustado da mãe — uma mulher em cujo corpo restavam poucas partes a serem mastigadas pelo câncer.
(Então, você desenhou aquelas palavras como uma confissão. Lá fora um agitado Cérbero me esperava com a baba a escorrer pelo canto da boca.)
Algumas guerras precisam ser vencidas de maneira rápida. Arrastei meu sobrinho para uma clínica. Lá o trancafiei durante meses. Aos poucos, o animal serenou os ânimos na jaula. Paguei a dívida com o traficante. Procurei (sem sucesso) um revólver que fazia parte do cotidiano daquele quarto. Ainda hoje sonho com uma arma apontada para a minha cabeça prestes a disparar. Um dia, quem sabe, meu cérebro escorra pelo travesseiro. Depois, arrastei minha mãe — uma mulher à beira da morte — para outra casa. Meses depois ela morreria enrolada às cobertas. Quando acordei, encontrei-a ali com aquele olhar a escancarar o fim inevitável. O menino-traficante saiu da clínica com uma nova vida. Agora, fica ao meu redor, como um cão a pedir proteção. Temos um ao outro.
(Quando seus lábios formaram aquela frase, o revólver disparou. Parte do meu cérebro escorre pela borda da cama e pinga lentamente no piso de madeira. Agora, só busco a paz.)
Meu irmão voltou a morar naquela casa. Uma história longa e difícil, como quase tudo ao seu redor. Desde o dia em que arranquei meu sobrinho do quarto, há mais de dez anos, nunca mais voltei lá. Não sei quem o habita. Um dos filhos do meu irmão, talvez. Não tenho interesse em saber. O traficante segue livre pelo bairro.
Eu, de alguma maneira, sigo preso naquele quarto de paredes úmidas.