O naufrágio

Precisávamos nos aboletar em velhos fuscas, brasílias, por estradas de terra, até a igreja; a noiva teria o privilégio de ir no banco da frente
Ilustração: Raquel Matsushita
01/03/2021

A vaidade não nos é hereditária. A mão ignorante teimava em errar o traçado dos lábios. Alguém precisava ajudá-la. O Coringa — sem que fizéssemos a mínima ideia de sua existência — nos observava na vergonha doméstica. A algaravia denunciava a ansiedade por algo que nos fugia ao controle. Era preciso delinear a geometria do sorriso da noiva. A manhã nascera ruidosa — espasmos de traquinagens misturavam-se às conversas adultas. O retorno de boa parte da família à roça era comemorado como se houvesse afeto indestrutível na estranheza que nos ligava.

A tia caçula — irmã da minha mãe — enfim se casaria. Havia no ar aquela sensação de alegria e certa ansiedade. Nós, um bando desgovernado de crianças, queríamos correr, gritar, insuflar um mundo que começava a habitar apenas o imaginário. O cenário bucólico — bois pastavam sonolentos no potreiro cercado por arame farpado; a água a escorrer da serra em canos de bambu; o rio vagaroso a lavar nosso corpo no fim da tarde — escondia histórias silenciosas.

(Quando abriu o portão da casa, o filho — um jovem de uns vinte anos — recostava o corpo morto no batente da porta. Estava ali havia algum tempo. Parecia descansar de mais um dia de trabalho. Sentou e morreu sozinho. Tinha algo errado no coração. Ninguém sabia. Neste tempo, o marido já não estava mais na casa.)

Os ruídos se avolumavam com rapidez, envolviam nossa expectativa. O vestido branco de segunda mão — que noiva o usara antes? — amparava uma mulher tímida e assustada. Talvez os dentes ainda fossem de verdade, mas a boca não escondia o desassossego do corpo. Não foi um grito, apenas um alerta: o batom. O pequeno bastonete surgiu entre mãos agitadas. O farfalhar dos dedos a buscar um rumo. É preciso passar batom na noiva. Parecia uma frase um tanto simplória, mas escondia uma derrota. Aos poucos, o batom passou de mão em mão. Ninguém se atrevia a pintar a boca da irmã caçula. Ela, descobriu-se, nunca usara batom. As irmãs, muito menos. Minha mãe, a mais velha da triste dinastia, morreu com os lábios ressecados e incolores. Havia entre todos a dúvida prosaica de como pintar o vermelho naquele rosto. Coringa sorria em algum canto.

(Era um homem feio, sujo e fétido. Recendia um cheiro azedo, de algo estragado. Fumo, cachaça, suor e dentes apodrecidos — restos abandonados ao relento das moscas. Sempre bêbado. Não lembro seu nome. Perdeu-se em alguma gaveta da memória familiar. Pouco convivi com ele. Era motivo de chacota entre os mais jovens. Inventava histórias inverossímeis — um capenga fabulador. E, diziam, era violento e batia na esposa, minha tia. A roça, já estéril à sobrevivência, logo após o casamento foi trocada pela cidade grande. Em C., o concreto dos dias acabou preenchido por porres, trabalhos na construção civil e bicos esporádicos.)

Precisávamos nos aboletar em velhos fuscas, brasílias, variantes, por estradas de terra, até a igreja. A noiva teria o privilégio de ir no banco da frente. Ao volante, seu irmão mais velho — um homem magro, de olhar bovino e gestos bastante lentos. Lembro da pequena caravana de carros a serpentear pela lama, numa paisagem de milharais sem fim. Hoje, sei que era uma cena melancólica, mas a infância nublava minha capacidade de prever tragédias particulares.

Após um breve sumiço com uma das irmãs, a tia surgiu ainda mais cabisbaixa. Jamais esqueci a triste figura: o batom tracejado pintara uma boca torta. O vermelho equilibrava-se com dificuldade nos lábios finos. O vestido de noiva era insuficiente para dissimular o tímido sorriso que se completava em desequilíbrio — um barquinho de papel a naufragar na enxurrada.

(Não fui ao enterro daquele primo distante. A vida nos afastou com certa facilidade. Minha família não passa de um emaranhado de sobrenomes e lembranças apagadas. Fiquei sabendo de sua morte dias depois. A tia, encontrei-a há alguns anos num estranho almoço que tentou nos aproximar a todos. Não usava batom.)

Tenho a fotografia. Encontrei-a ao vasculhar documentos guardados numa caixa. Somos uma fileira no altar da igreja logo após o casamento. Imitamos um time de futebol com muitos jogadores. Estão quase todas as crianças na foto. Ao fundo, uma réstia, um espectro, deixa escapar os traços da minha mãe. Sou o último à direita. Estou agachado, com o cabelo meio desgrenhado e o sorriso indisfarçável da meninice. Um Cristo imenso pregado numa cruz de madeira nos observa ao fundo. Talvez olhe com certa ironia para nossos futuros. Da foto, minha irmã morreu jovem, antes dos trina anos. Meu primo tombou em confronto com a polícia. Minha mãe, o câncer mastigou. Uma das primas, o lúpus matou. Aos poucos, a fotografia encolhe, desbota. Logo, desaparecerá.

(O padre disse “eu vos declaro marido e mulher”. A boca enviesada recebeu o desajeitado beijo. O mundo em completo desequilíbrio. O naufrágio era inevitável.)

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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