O menino morto

As pernas finas agitaram-se com fúria na água, aos poucos a fúria arrefeceu, tornou-se mansidão, o corpo a boiar, as costas a estampar o número dez na camisa
Ilustração: Carolina Vigna
01/01/2025

Nós o matamos. No relento do sol — os raios feito adagas por entre as árvores magras —, o corpinho boiava na água suja. A solidão da morte o embalava na placidez da tarde de domingo. Lá se vão exatos quarenta anos: 20 de janeiro de 1985. Era um menino magro, quase esquelético, o mais franzino da nossa turma de pequenos arruaceiros. Da beira do lago, meu espanto vislumbrava apenas a camisa do time de futebol a boiar de costas, nas cores vermelha e preta, como se um pedaço de pano pudesse esconder o nosso crime. Matamos o Chinês naquele domingo ensolarado. Não foi difícil. É muito simples matar alguém — basta querer.

Tínhamos um acordo: nossas mães eram sagradas. E as defendíamos como se fossem santas, mesmo quando tínhamos certeza de que estavam mais próximas da danação do que do paraíso. Enfim, elas, as mães, tinham de suportar uma vida miserável, maridos bêbados, ignorantes e violentos, um inferno permanente. Nosso pai era um representante legítimo dos homens que nos cercavam — um sujeito bruto, desprovido de afeto e pronto para nos ensinar que a vida é feita de murros e pontapés.

Astronauta — o ridículo apelido nada tinha a ver com algum risível sonho infantil sobre o futuro, aquela bobagem “o que você quer ser quando crescer?”, mas devido à circunferência da cabeça; ele, um menino desgraçadamente feio, ostentava uma cabeça gigante num corpo magro e esguio; andava meio de lado, talvez na tentativa de equilibrar a cabeçorra na batalha contra a gravidade; no início da turma, o chamávamos de Capacete, mas um dia sua mãe gritou na rua “desgraça de menino que vive no mundo da lua”; rimos feito hienas desesperadas: pronto, a partir de então, Capacete virou Astronauta; e quanto mais ele odiava o apelido, mais nos divertíamos com as pilhérias sem fim, até que numa manhã de sábado, no campinho de futebol, ele deu-se por vencido: “sou um Astronauta de pau grande”; ele tinha certa obsessão com o pau, que realmente era grande e nos espantava quando disputava com outros meninos da sua idade um acirrado campeonato de punheta no paiol atrás de casa —, um fajuto astronauta, segurou firme o Chinês pelo corpo e o jogou no pequeno açude. Em seguida, Pateta também pulou na água. Eram comuns estas brincadeiras bizarras entre nós. À margem, eu apenas observava o início do alvoroço. Meu irmão perguntou “não vai entrar?” e, sem esperar a resposta, mergulhou na água lodosa. Meu irmão tinha um apelido estranho: Preto, mas não era nada preto, tampouco era branco como a mãe. Ficou estacionada na pele a herança entre o pai e a mãe. De resto, sempre foi parecido com aquele homem que tanto nos batia. Meu apelido, Gélo, também soava algo bisonho. Éramos uma gangue de cinco moleques, cada um com sua alcunha e sua história engraçada, trágica ou melancólica: Astronauta, o mais velho, já quase um homem, Pateta, Chinês, Preto e Gélo. No dia 20 de janeiro de 1985, faltava um dia para eu completar doze anos de idade. Mas a infância tinha acabado pouco tempo depois do meu nascimento.

Todos tivemos destinos peculiares. Astronauta morreu atropelado por um ônibus; estava bêbado numa trágica imitação do pai. Pateta virou vigilante numa empresa de segurança residencial. Meu irmão é calheiro e já despencou diversas vezes de telhados; arrasta a perna esquerda ao caminhar. O Chinês está morto e enterrado no mesmo cemitério onde estão minha mãe e minha irmã (cuja vida durou míseros vinte e sete anos), mas na outra extremidade, ao lado do portão de entrada.

O Chinês olhou-me em desespero. Talvez soubesse que iria morrer. Pateta e Astronauta o seguravam com firmeza. Afogavam o corpo magro e puxavam para fora, com método e sincronia, até parecia algo ensaiado à exaustão. No início, Chinês chegou a gritar “vocês vão me matar”. Meu irmão, com a água até a cintura, fazia cara de que estavam passando um pouco do limite das brincadeiras anteriores. De repente, Astronauta desistiu de tirar a cabeça do Chinês do fundo do lago. Deixou o menino lá, debatendo-se no início, até que os pés tremeram, um breve espasmo, para, em seguida, todo o corpo serenar na morte planejada. “Puta é a tua mãe, Chinês do caralho”, gritou Astronauta, como se a morte aliviasse todas as suas vergonhas.

Quando o Chinês chegou ao bairro, vindo da roça como a maioria de nós, logo começamos a chamá-lo de Pirata. Ele tinha manchas brancas pelo corpo — só mais tarde, saberíamos o nome da doença: vitiligo — e um círculo em volta dos olhos deixava-o com a cara do cachorro sarnento do final da rua, cujo nome era Pirata. Enfim, foi Pirata até o dia em que seu pai — um homem gordo, a pança a escapar para fora das camisetas encardidas, e manco da perna esquerda, o que lhe rendeu dois apelidos distintos: Ponto e vírgula e Deixa que eu chuto — anunciou que iria trabalhar na pastelaria de um chinês, no Centro de C., a cidade que nunca nos acolheu. Voltava para casa sempre no começo da noite com um pacote de pastéis molengas e gordurosos, quase nojentos. Era comum Pirata nos encontrar com os dedos lambuzados de gordura e com alguns pastéis de carne num pacote plástico. “Meu pai pegou lá do chinês”, sempre anunciava, como se isso trouxesse alguma dignidade à sua vida miserável. De tanto falar do chinês, resolvemos mudar de Pirata para Chinês. Tínhamos certo orgulho dos nossos apelidos, por mais ridículos que nos parecessem.

Ele não vociferou “você é um filho da puta”. Isso, possivelmente, Astronauta teria perdoado, após dar uns tabefes na cara esbranquiçada do Chinês. O desgraçado do moleque — nunca soubemos por quê — encarou Astronauta, já meio abobalhado pela maconha que fumava quase todos os dias (a maconha, ele comprava de um traficante que, muitos anos depois, cooptou meu sobrinho para o trabalho no tráfico; Astronauta sempre tinha dinheiro; ele trabalhava num daqueles restaurantes italianos de C., que ainda hoje recebem hordas de turistas para comer polenta e frango; e contava que, muitas vezes, ia ao banheiro e mijava nas mãos para, em seguida, temperar o frango que seria servido com alegria às famílias; “ficava até mais gostoso”, ele dizia entre gargalhadas; hoje, quando me convidam para ir àquele restaurante — algo que me causa certa angústia —, imagino o Astronauta encharcando as mãos para o bem da gastronomia italiana), e berrou feito um animal ferido “a tua mãe é uma verdadeira puta, cabeçudo do caralho”. E saiu em disparada para casa.

O Chinês usava a camisa rubro-negra do nosso time do coração. Torcemos bestialmente naquele domingo, mesmo sendo um amistoso um tanto sonolento de início de temporada. A tevê mostrava jogadores preguiçosos e satisfeito com um empate sem graça e sem gols. Logo depois do jogo, Astronauta e Pateta apareceram lá em casa. Fomos todos até o açude no meio do mato, onde nadávamos sem que nossos pais — sempre mais preocupados com suas misérias — impusessem alguma restrição. O açude não passava de uma espécie de improvisada piscina, de onde uma bomba sugava a água que seria utilizada na chácara de flores onde morávamos. Lá, nadávamos sempre que o sol de C. soltava algumas fagulhas. Naquele 20 de janeiro de 1985 (nunca esqueci a data porque, naquele dia, matamos um menino e meu primo mais velho, um sujeito bastante bronco, tinha ido ao Rio de Janeiro para um grande festival de rock; antes da viagem, ele me disse rindo “vou lá fumar toda a maconha do mundo”, como se isso o fizesse uma pessoa menos idiota do que já era; era só mais um desocupado maconheiro, que ficava ao nosso redor com seus olhos esbugalhados, sua risada medíocre e sua fome indecente), o sol soltava labaredas no céu de C.

As pernas finas agitaram-se com fúria na água. Aos poucos, a fúria arrefeceu, tornou-se mansidão. O corpo a boiar, as costas a estampar o número dez na camisa do mediano time de futebol. Ao redor, éramos três meninos e um quase-homem. Não estávamos assustados. Quando encontraram o corpo à deriva, no início da noite, todos lamentaram que um menino tão bonzinho morresse afogado daquela maneira.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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