O louva-a-deus reza

A mãe acredita em Deus. Ao pé da escada, o corpo retorcido acaricia as páginas da Bíblia. Deus está em algum lugar ali dentro
Ilustração: Troche
01/04/2013

 

A mãe acredita em Deus. Ao pé da escada, o corpo retorcido acaricia as páginas da Bíblia. Deus está em algum lugar ali dentro. A mãe não sabe muito bem onde. Mas acredita. Desço lentamente a escada em caracol. O dia começa. Todas as manhãs a encontro no mesmo lugar. Não desiste nunca. Algo a carrega na permanente imobilidade. Do alto, vejo um desajeitado louva-a-deus — inseto estranho e temido — folheando o livro sagrado. Certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, deparei-me com a mãe metamorfoseada num louva-a-deus monstruoso. Presto muita atenção onde piso. Os degraus metálicos são estreitos. A mãe pendura o invólucro com o líquido hipercalórico no alto do corrimão. Puxa a cadeira e senta-se à espera do insosso café-da-manhã. Mastiga o líquido esbranquiçado pelo buraco do abdômen. O buraco leva o extravagante nome de jejunostomia. Não passa de um rombo na pele flácida, costeado por uma montoeira de esparadrapo. A cânula plástica fica ali balangando. Desvio a parafernália grudada na barriga da mãe, raspo o tornozelo nas páginas bíblicas, digo o protocolar bom-dia e sigo para a cozinha.

O louva-a-deus é venerado na China. Alguns estilos do kung fu são baseados nos movimentos do inseto de ambições divinas. Eu sonhava ser o Bruce Lee. Dar piruetas estrambóticas, quebrar telhas com chutes certeiros, voar pequenas distâncias pelos telhados dos vizinhos. Chamava os amigos e amarrava numa árvore um saco de estopa cheio de areia. O matagal ao lado de casa cedia espaço para as filmagens de um longa-metragem de artes marciais cujo fim não nos importava. Eu era o Bruce Lee. Enfrentava todos os inimigos com saltos de louva-a-deus. Os berros causados por golpes desajeitados alertavam a mãe. Nossas orelhas grudavam com facilidade nas mãos ásperas, nos dedos nodosos. Éramos arrastados para dentro de casa — lugar menos perigoso para crianças com ambições desproporcionais à completa falta de elasticidade. Aos poucos, perdi o interesse por Bruce Lee. Ele me parecia um tanto ridículo com seus pulinhos e gritinhos histéricos. O Patolino era mais divertido. E menos perigoso. Não me recordo dos canhestros golpes no saco de areia quando desço a escada a cada manhã e encontro um louva-a-deus agonizando.

A mãe usa óculos redondos. Eles deslizam pelo nariz. A Bíblia nos joelhos é devorada com a lerdeza de quem pouco freqüentou a escola. Dois anos no máximo. Na roça, a enxada é sempre mais importante que o lápis. A palavra de Deus chega quase estrangeira aos olhos da mãe. Nem sempre Deus escreve certo por linhas tortas. O louva-a-deus lembra uma pessoa rezando. O apelido é muito óbvio. Mas ele não devora palavras sagradas. Ao fim do ato sexual, a fêmea mata e saboreia o macho. É um destino tragicômico: após o gozo, a morte. Tenho dúvidas de que meu pai seja este homem lento que, às vezes, aparece aqui em casa em busca de comida. A mãe teria devorado meu verdadeiro pai após a cópula que me atirou para este lado do mundo? Ser filho de louva-a-deus é padecer num abismo de dúvidas. Existem cerca de duas mil e quatrocentas espécies de louva-a-deus. A mãe é da espécie azarada.

Jardineiros gostam de louva-a-deus. São agressivos e caçam moscas e afídios — os vulgares pulgões. Deixam os jardins em ordem sem o uso excessivo de produtos químicos. Faxineiros famintos e disciplinados. Preparam emboscadas e atacam em vôos espetaculares que lembram um caça de combate. A mãe gosta de plantas. Deseja um jardim na nova casa em Campo Largo. Logo, faremos. Talvez seja vertical devido à falta de espaço. Quando chegamos a Curitiba no final dos anos 1970, fomos morar de favor numa chácara de flores. Passávamos os dias entre samambaias, azaléias, crisântemos e avencas. A mãe ia à frente puxando uma longa mangueira. Percorria as estufas para regar as plantas. Eu, um menino magricelo, desenroscando a mangueira, que serpenteava sem muita mobilidade. Vivi parte da infância atrás da mãe. Agora, é ela que rasteja nos meus calcanhares, sem forças para se desenroscar.

Na chácara, matava insetos e os enterrava no fundo de casa. Treinava o ritual da morte. Colocava os defuntos em caixas de fósforos. Às vezes, o irmão me acompanhava. Deitava grilos, joaninhas e aranhas em caixas de fósforos da marca Pinheiro. Escrevia nomes e datas em caprichadas lápides de papel. Construía cruzes com varetas de bambu. Fantasmas de insetos sobrevoavam meu sono. Era raro matar um louva-a-deus. Havia poucos. E o medo não deixava me aproximar deles. Na igreja, aos domingos pela manhã, eu ajoelhava e rezava com fervor. Também tive meus dias de louva-a-deus. A mãe levou todos os três filhos à catequese. O mundo não poderia nos seduzir. Tínhamos de nos agarrar às mãos invisíveis de Deus. No auge da fé, cheguei a coroinha. A mãe orgulhava-se da minha intimidade com Deus. Nos velórios atrás de casa, orava com devoção. Lia trechos da Bíblia. Encomendava a alma dos grilos para o Nosso Senhor Jesus Cristo. Por minha culpa, o Céu deve estar infestado de insetos.

Quando a mãe morrer, não será possível enterrá-la numa caixa de fósforos. A não ser que o câncer a transforme num desprezível inseto. Terei de comprar um caixão e um lote no cemitério. Se ainda morássemos na chácara de flores, poderia construir um belo túmulo atrás de casa. Cavaria um buraco estreito — a mãe está magra feito um varapau — e colocaria nome e datas numa lápide de cartolina. Deus ganharia a companhia de mais um inseto. Um louva-a-deus de verdade.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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