O inferno são os vermes

Na podridão da casinha ao fundo de casa, o baile dos vermes nos esperava enquanto a salvação divina não chegava
Ilustração: Guilherme Paixão
01/11/2022

Tínhamos de encontrar Deus. A rua de pedregulhos e poeira nos levaria à salvação. Bastavam fé, humildade e um bocado de paciência. Era nossa única alternativa — uma espécie de aposta divina da mãe. Deus: aquele homem bondoso e misericordioso, de barbas longas, branco como nós, cabelos bonitos e um olhar que nos transmitia paz e segurança. Confundíamos Jesus com Deus nas missas dominicais na ânsia pelo paraíso antecipado. Mas, ao fim, a mãe nos tranquilizava, não se preocupem: é tudo a mesma coisa. Talvez não quisesse usar a palavra coisa para algo tão importante. Ou talvez a banalidade semântica era para nos aproximar ainda mais da graça tão ao nosso alcance. Rezar, arrepender-se e obedecer cegamente o que nos ensinava a Bíblia. Éramos um ingênuo rebanho a caminho da eternidade.

Qualquer coisa — ainda mais um céu de nuvens celestiais e aspecto de algodão doce de parque de diversões — nos parecia melhor que a precariedade ao redor. O que mais me incomodava era a falta de banheiro, de um mísero vaso sanitário, de um rolo de papel higiênico. Aquela casinha de madeira ao fundo do terreiro nos lembrava o tempo todo que a salvação não seria simples como tentava nos ludibriar a mãe. Quando chegamos a C. — esta cidade agora imensa e desumana —, cavamos o buraco com a destreza de um tatu de unhas afiadas e certeiras. Éramos arquitetos da própria desgraça. Não tínhamos tempo a perder. Afinal, o corpo ignorava a nossa miséria. A merda nos saía das entranhas sem qualquer decência.

Depois, míseros pedaços de tábuas se transformavam em um vaso sanitário quadrado. A cobertura de eternite, as paredes cheias de frestas e a porta com uma taramela desbeiçada completavam o canhestro banheiro. Num prego, a mãe pendurava tiras de jornal. Pronto: estávamos preparados para o baile dos vermes.

Íamos à missa com as melhores roupas, em geral, costuradas pela mãe na velha máquina Singer. Nunca considerei a mãe uma grande designer de moda. Nem o seu corpo esquelético tinha a leveza das modelos a desnucar as ancas na passarela. Era comum a costura sair torta, meio enviesada, franzida nas beiradas. Nossa elegância era um quadro borrado de Dalí de ponta-cabeça. Na igreja, sentávamos todos nos primeiros bancos, diante de um altar repleto de santos, flores e Deus (ou seria Jesus?) a nos olhar com ganas de nos arrastar à vida eterna. Rezávamos com gosto (e certa ironia infantil), sempre sob a vigilância atenta da mãe. Não tínhamos o direito de estragar seu plano messiânico familiar. Acabada a missa, íamos os filhos à catequese. Rezar não bastava: era preciso saber exatamente a quem dirigíamos nossas palavras de salvação. E quem eram nossos inimigos.

Aos poucos, o buraco se enche de merda. Vira aquele lodo fervilhante. No início, dá certo nojo. O asco arranha a garganta. Depois, acostuma-se com o fedor, as moscas e a sensação de que o demônio pode surgir entre os vermes e nos puxar para o reino dos infernos. No calor, a podridão flutua pelo terreiro, em torno da casa. Eu caminhava sempre a dizer não vou olhar, não vou olhar. Mas ao final, talvez na ambição de um milagre, mirava calmamente o buraco. Lá embaixo tudo parecia não ter salvação. Os vermes (ou seja lá o que fossem) movimentavam-se com alegria, bailavam na massa pastosa de nossos restos. Eu pegava uma tira de jornal e lia enquanto meu corpo não se importava em entregar-se ao escárnio do mundo.

(O jornal estampava, em geral, notícias populares: mulheres em poses sensuais, crimes e futebol. Parecia uma ironia ou, talvez, uma provocação da mãe à nossa santidade. Mas estava no lugar certo: no inferno dos nossos dias.)

Um domingo antes da primeira comunhão, eu precisava limpar a alma de todos os pecados, em especial aqueles orquestrados na solidão do beliche, amparados na palma da mão. Seria nossa primeira confissão — o que nos garantiria um bilhete de boas-vindas ao paraíso. Mas durante a vida seria necessário renová-lo inúmeras vezes até o encontro definitivo com Deus. Perdi meu bilhete no meio da jornada. E nunca mais voltei para procurá-lo.

Na teoria, parecia algo bastante simples. A mãe nos orientou a contar tudo ao padre. Eu só não sabia muito bem o que significava aquele tudo. Passei a semana a remoer meus inúmeros pecados infantis: roubar frutas, tentar ver a calcinha das meninas no recreio, ofender o pai (a mãe, nunca) em pensamentos violentos, brigar com o irmão, mentir para os amigos, sonhar com a Xuxa pelada. Era um rosário de delitos que me tirava do caminho celestial.

Um a um, meninos e meninas sentavam nos bancos da igreja perante um padre. Eram quatro ou cinco sacerdotes, homens sérios, paramentados de vestes pretas e um crucifixo enorme a balançar no peito. Ouvia-se somente o ciciar das bocas em busca da clemência e do amor eterno. Em seguida, cabisbaixos, todos se ajoelhavam e rezavam com a certeza de que suas almas levitavam rumo ao céu. Eu aguardava sem qualquer ansiedade a minha vez de desfiar a lista memorizada durante a semana. Iria, obviamente, esconder alguns deslizes. Deus não precisa de tantos detalhes.

O padre era o mais velho daquele mutirão divino. Fez um sinal com a mão para que eu me sentasse. A barba não me lembrou Jesus a espreitar do altar: muito longa, branca e desgrenhada. Em volta dos lábios, notava-se, meio amarelada. Talvez fumasse escondido ou descuidasse da higiene. Sobre higiene, eu preferia não pensar.

Quando abriu a boca e disse conte-me os seus pecados, senti um soco no nariz. O hálito ácido, cheiro semelhante ao do paiol repleto de ratos atrás de casa, fez-me olhar para o assoalho de madeira lanhado pela gula dos cupins. Desviei ao máximo qualquer possibilidade de receber de frente as palavras de salvação. Infelizmente, não conseguia pensar no céu de algodão doce, em flores coloridas, no aconchego eterno da bondade. Apenas vinham-me os vermes da patente infestada de podridão. Resisti até o final. Não lembro quantas ave-marias e pais-nossos tive de rezar para me redimir dos pecados.

Por algum tempo, continuamos a utilizar a casinha fantasiada de banheiro. Até que um dia, um vaso sanitário apareceu ao lado do chuveiro, escondido por uma cortina de plástico, num desenho arquitetônico, no mínimo, bizarro. Mas já não havia mais os vermes para nos sorrir na barafunda lodosa.

Pouco antes de morrer de câncer, levei a mãe à missa. Ela entregava-se à fé na esperança de algo impossível. Ao seu lado, eu apenas sentia o cheiro pútrido que o seu corpo em decomposição exalava. No altar, o padre rezava sob o olhar de Jesus, rodeado por nuvens em forma de algodão doce.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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