Precisamos aprender a morrer. Quando entrei na London City, para tomar um café e esperar J., o guarda a subir as escadas era apenas um fantasma, um plasma, a me rondar noite e dia desde aquela madrugada insone. Era apenas uma névoa, uma mancha em minha existência. Mas não ia embora. Quando tentei mexer as pernas em direção contrária, ainda com uma das mãos aconchegada no seio infantil que me deliciava, ele mandou-me parar. Apontou-me o revólver e, estátua ungida de pavor na noite de C., congelei à espera do pior. Da redenção de todos os meus pecados.
Na London City, folheio Os prêmios, cujo primeiro capítulo foi ambientado na famosa cafeteria na Avenida de Mayo, 599, na região central de Buenos Aires. Três quadras adiante está o Tortoni, onde B. era ilustre freguês. Abro o livro e lá está a frase que, invariavelmente, leva-me à noite em que rondei, sem exageros, as bordas do inferno: “Precisamos aprender a morrer”. Só a encontrei alguns anos depois, mas ao avistá-la tive a certeza de que me acompanharia vida afora.
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Cheguei no início da tarde à praça onde a arrogante universidade tenta nos esmagar com suas colunas clássicas. Sentado em um dos bancos, rodeado por pombas tão curiosas quanto famintas, esperava pelo ônibus que traria a menina de seios grandes, c0xas grossas e lábios de perdição. Dos seios e coxas, a proximidade era ainda imaginária. Os lábios, havia uma semana, aquário repleto de alimento, saciaram a sede e a fome. A roupa nova, comprada com o salário na fábrica de móveis de bambu, emprestava-me certa dignidade ao atirar pipocas sujas às pombas. Sapato e calça jeans tripudiavam a mentira estampada na blusa de moletom: “Eu vi o cometa Halley”. Bêbado, aos 13 anos, a olhar o céu nevoento de C., nunca vi o cometa Halley. Nunca vi qualquer cometa. Mas não resisti a comprar na rua Riachuelo a espúria vestimenta. E com ela, armadura real de cavaleiro suburbano, esperava a menina que conhecera havia alguns dias. Do banco, pulei para os arames que ainda sustentam os pontos de ônibus de C. Tinha tempo. A danceteria só abriria às cinco, atrás do Guadalupe. Um sorvete e uma coca preparariam o corpo para as caipirinhas e beijos amassados na parede. Contava o tempo pelo número de ônibus que chegavam e partiam. Aos domingos, a cada um, trinta minutos. Cinco já haviam encarado meu ridículo moletom. Tinha tempo e vitalidade. A espera valia a pena.
No oitavo ônibus, ela desembarcou. No rosto, a descrença de ainda me encontrar ali, parado, sorriso de bocó, sapatos, jeans e Halley a percorrer meu peito de criança. Ao seu lado, a magricelinha. Não a conhecia. Em silêncio, sem tempo para coca e sorvete, rumamos para a danceteria. Na semi-escuridão, não falamos quase nada. “Vou ali com umas amigas.” Era, entre todos nós, vermes em busca de carne para fuçar, a senha do adeus. Não durou nada. Apenas alguns beijos na danceteria na outra praça, onde subíamos por uma escada infinita, cujo corrimão era uma ridícula corrente. Hoje, ali um bilhar em nada lembra nosso trenzinho de carnaval a rodopiar por um trilho rumo ao inferno.
Aos 13 anos, sem ver o Halley, não se pode perder tempo quando os beijos são poucos e o sexo apenas ilusão e ânsia. A magricelinha já sabia de tudo. A amiga tentara-me vencer pela angústia da espera. Não conseguira. Agora, o abandono. Já tinha outros planos. Eu fora um equívoco, um desperdício esquálido sem nenhum brilho. No entanto, não havia espaço para tristezas. Após a primeira caipirinha vermelha — uma mistura sódica de cachaça e groselha, mexida com um palito de sorvete, que logo perdia a consistência e lembrava uma lesma a debater-se no caldo avermelhado —, mergulhei nos lábios da amiga. Os peitos pequenos, apenas grãos a futucar minha sanha de astronauta perdido na escuridão, deslizavam pelos meus dedos. Na balbúrdia dos corpos, impossível divisar nos cantos das unhas os restos de diesel — herança dos dias a limpar bambu com maçarico e estopa encharcada no óleo viscoso para construir mesas, cadeiras e sofás, que logo estariam na sala de algum panaca.
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A fabriqueta ficava perto de casa, entre descidas e subidas. Percorria o breve trajeto no lombo da bicicleta azul herdada do irmão. Equilibrava-me com dificuldade. Não tinha freio. Metia com gosto o kichute na carne dos pneus para diminuir a velocidade. O cheiro de borracha queimada: meu primeiro crematório. Entre bambus, junco, diesel, passava a semana à espera da danceteria, algum seio, caipirinha vermelha (ou seria verde?) tingida por lábios disponíveis.
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Saciados, pequenos vermes pançudos, precisávamos pegar o ônibus, voltar para a realidade, dormir, recomeçar a semana. Eu a deixaria no ponto e seguiria para a praça ao lado. Morávamos em bairros distantes do centro de C. Ao chegar ao ponto, o último ônibus contornava o teatro pomposo. Agora, somente às seis da manhã. Pensei em deixá-la ali a alimentar pombas noturnas. Precisava correr e embarcar no derradeiro ônibus que me levaria ao segundo andar do beliche dividido com o irmão. Agarrou-me pelo moletom, no rabo do Halley, e suplicou-me que ficasse. Subimos as escadas da universidade, escolhemos um canto protegido do frio e deixamos mãos e sofreguidão percorrerem a madrugada.
Não deu tempo, da kombi saíram o guarda e duas mulheres de uniforme, larguei o corpo miúdo, tentei correr, não deu, não foi possível, o guarda, arma na mão, disse-me “parado”, parei, congelei de medo, nenhuma frase, nem mesmo “precisamos aprender a morrer”, apenas medo, pensei na mãe a me esperar, na bicicleta azul sem freio, no kichute fedorento, no maçarico, no óleo diesel, na burrice da espera. Jogados na kombi, em cuja lataria consegui ler algo como “assistência social”, voltei ao mundo, tranqüilizei-me, estava vivo, nenhum tiro atingiu o rastro luminoso do Halley, não tombei o corpo lasso em poça de sangue nas escadarias da universidade. Percorríamos as praças de C.. A cada parada, uma nova leva inundava a kombi com o cheiro de suor, urina e merda. A humanidade toda cabia ali dentro. Meninos e meninas de rua olhavam intrigados o Halley a brilhar no meu peito. A magricelinha sumia por entre meus braços tomada de pavor e ódio. Fomos levados a um casarão. Passaríamos ali a noite toda. De nada adiantaram minhas súplicas e explicações: “Mas eu tenho de trabalhar”.
Um dos guardas, talvez amante da astronomia, disse-me que guardaria minhas roupas e sapatos, para evitar que fossem roubados à noite. O Halley estava salvo. Na ampla sala, dezenas de moleques se esparramavam pelos catres no chão. Encostado à parede, assistia a tudo com medo e grande interesse. Uma briga por um pedaço de pizza, roubado antes da passagem da kombi, causou alvoroço. Logo a pendenga foi resolvida às gargalhadas. Alguém gritou “pega a Playboy”. Assustei-me. Pensei que seria linchado. Eu, playboy de unhas untadas de diesel? Logo, uma revista passava de mãos em mãos. Incluído ao grupo, li na capa colorida: “Pela primeira vez a nudez total de Yoná Magalhães”. Na penumbra, encontrei uma mulher longilínea, cabelos em excesso, braços e pernas finos, pêlos volumosos e cara de desejo. Havia outras coisas interessantes: “Tamanho importa? Meça o que elas dizem”; “3 gatinhas da supersafra”; “Martha Rocha fala de sua cama, seu banho e seus amores”; “O que você precisa saber sobre Aids para não cortar seu barato”. Não havia nada sobre o Halley.
Ao amanhecer, recebi calça, sapatos e moletom. E uma bronca para não ficar mais na rua de madrugada. Peguei o primeiro ônibus rumo ao beliche. Na janela, a mãe esperava. Menti que passara a noite na casa de um amigo e pulei para a cama. Do alto, mãos e dedos grossos arrancaram-me com fúria das cobertas: “Vai trabalhar”. Amortecido pelo sono, embarquei na bicicleta azul, disposto a rasgar as carnes do pneu traseiro com o kichute fedorento.
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Em 1991, os astrônomos Olivier Hainaut e Alain Smette descobriram que, ao fotografar o cometa Halley, havia apenas uma mancha de luz brilhante no lugar onde ele deveria estar. Desconfia-se de que ele esteja morto.