O espelho e a pedra

Uma mulher caminha pela casa que guarda lembranças há muito esquecidas
Ilustração: Guilherme Paixão
01/09/2022

Dentro da cabeça, em suas tantas curvas, carrega uma pedra, ainda incapaz de impedi-la de arrastar as pernas pela ampla casa no alto do morro com o rio lá embaixo a refletir um imenso espelho. As vacas pastam lentas nas encostas, enquanto crianças correm alvoroçadas pela casa arejada, bonita, de piscina no canto e gramado volumoso a espraiar-se ao redor. Os gritos não a atingem: impassível, movimenta-se com a desenvoltura das lesmas. A pedra na cabeça é a grande culpada, calcinara quase todas as lembranças e os nós no corpo já a impedem de ver que o mundo ainda é muito maior que seus inseguros passos entre a mesa do café e a varanda diante do rio. Olha-o com a saudade na ponta dos olhos e vê muito pouco. A pedra há muito ofuscou a sua visão, agora turva como as águas do rio em dias chuvosos. Logo cedo, tateia os ladrilhos, passa por debaixo da rede estendida, enrosca-se em uma cadeira esquecida no meio do caminho e volta à mesa do café. Percorrera alguns quilômetros no passado feito de bolos e salgados pra juntar dinheiro e conhecer o Rio de Janeiro. Cabelos bem cuidados escondem a enorme pedra. Boca de batom delineado à perfeição deixa escapar palavras caducas: “Filho, não saia que me deixa aflita”; “Não vou sair, mãe.” As falas são todas miúdas, como se economizadas para o resto dos passos em volta da casa bonita a refletir no espelho.

Não me lembro de seu nome, mas jamais esquecerei a serenidade de seu esquecimento, sentada à ponta da mesa a mordiscar o pão até se transformar em uma pasta molenga a deslizar pela garganta. Ninguém nunca a mira nos olhos. Alguém diz “é o medo da perda”. Família temerosa de sofrer ainda mais. Os passos no ladrilho parecem-me, a cada manhã, mais lentos e no terceiro dia de minha estada, juro, parecia que seus pés já não tocavam a lajota. Flanava como que impulsionada por nossa indiferença. Afeiçoei-me a ela numa distância silenciosa, afastada das crianças, mas a tocar levemente aquela maçã que se perdia na cesta de frutas, murchava e esvaía-se para, quem sabe, retomar o rumo do rio, saudosa com as poucas palavras que ainda a acompanhavam no longo passeio pela casa indiferente.

Já não me lembro quando a toquei pela primeira vez. Talvez tenha sido na recepção de toda a família. Ou um pouco mais tarde. Estava a um canto, disso lembro-me muito bem, a remoer os dedos. Cumprimentei-a com um aperto de mão e a mirei no fundo dos olhos com uma pena incomum aos desconhecidos. Jamais esqueci tamanha sofreguidão — a vida lhe escapava pelo corpo. A tez saturada a desmoronar no flácido tocar de mãos. O que eu esperava? Não muito, é verdade. Até mesmo porque evitava entender como tal estrutura ainda conseguia arrastar-se pela casa, se já desconhecia completamente os caminhos, confundia-os com facilidade, nomes e datas eram apenas objetos turvos, oblíquos e sombrios naquela vida que fora esquecida e figurava somente em fotos amarelecidas sobre a cômoda ou ao lado do samovar lá na cozinha, um canto escondido e longínquo para ela, por onde os netos e bisnetos bisbilhotavam atrás de biscoito com coca-cola.

A lógica não tem sentido — mínimo sentido — nos passos de agora, que roçam o chão e guiam-se pelas mãos recostadas nas paredes ou a atropelar os objetos. De pouca serventia a piscina, a churrasqueira, o lago feito espelho. Vale a saudade atravessada na ponta da língua: “Ganhei muito dinheiro com os bolos, conheci o mundo, até o Rio de Janeiro com o dinheirinho dos bolos; ainda lembro até hoje as receitas…”. As mãos fortes a bater a massa e delicadas a enfeitar o bolo, sob o olhar atento dos filhos e do marido. Agora não pode fazer mais e lamenta: “Queria fazer alguma coisa”. Apenas caminha entre a mesa e a varanda, nada mais, e lá se vão os anos pela fala trêmula e desconexa, sem sentido como aquela rede a atrapalhar o seu longo passeio matinal entre a mesa do café e a vista para o grande espelho.

Até parece que vejo lá embaixo o reflexo de uma pedra, mas tudo se dissipa com a rapidez do menino que corre em direção ao balanço. Sempre tudo some, vai sumindo e desaparece lá longe. Todas as manhãs o passeio não tem fim, a rede e as cadeiras espalhadas, tudo estorva o breve caminhar. E lá embaixo o rio reflete o mundo a sua volta e não se esquece de nenhum detalhe.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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