É um animal solitário. Quando afasto a cortina e abro a janela do quarto, a luz do dia ainda vadiando entre as árvores, vislumbro sua solidão do outro lado da rua. Ocupa o terreno da esquina — um grande pedaço de terra nesta cidade cujos traços de roça ainda se percebem pelas ruas. Cavaleiros de bombacha — seriam gaúchos falsificados? — passam a trote pelo asfalto. Milharais oferecem fartas espigas ao ladino pedestre. Quando cheguei aqui, o lote era apenas um matagal. Um dia, fincaram uma placa de “vende-se”. Tardou pouco até que um afortunado se tornasse o novo dono. Pela vizinhança, corria o falatório de que, em breve, um condomínio de casas ali nasceria. Algo deu errado, alguma burocracia travou o empreendimento. O mato começou a tomar conta de tudo. As árvores ao fundo continuam intactas. Já se passou mais de uma década, e o terreno permanece vazio. Abriga apenas a solidão do cavalo.
Cortávamos lenha, eu e o pai, naquela infância que ainda hoje me acorda de madrugada, com seus animados fantasmas a arrastar correntes por um terreiro de pedregulhos. No descanso do machado, o pai mostrou-me a perna — uma intimidade à qual não estávamos acostumados. Tínhamos poucas palavras na boca, e nossos corpos eram estranhos um ao outro. Éramos pai e filho apenas por um acidente genético — ou por azar, talvez. Eu era uma criança magrela — os ossos a rasgar a pele —, cabelo raspado para evitar a festa dos piolhos no casco irregular da cabeça. O pai, aquele homem bruto, alcoólatra, revestido de uma ignorância assustadora, empunhava o machado a cortar tocos para o fogão a lenha. Havia certo orgulho na frágil narrativa, como se, numa juventude imaginada, houvesse algo de heroico, algo de que se orgulhar: “O cavalo deu o coice bem aqui”, contou com vagar e precisão. Nunca havia notado aquela cicatriz no meio da canela seca do pai. Disse que fora pego de surpresa pelo animal. Um coice certeiro.
M., minha filha caçula, ama os cavalos. Não sei muito bem como esse amor surgiu. Num domingo, fomos a um lugar onde, além de um almoço exagerado, havia cavalos. Bastava comprar um tíquete, entrar na fila e montar num animal para uma breve volta pela ruela sombreada por cedros. “Eu quero andar a cavalo”, disse-me aquela menina de grandes e curiosos olhos no rosto quadrado, cujo pavor de cachorro transforma-se em gritos. Não a questionei. Entramos na fila e, ao chegar sua vez, montou no cavalo como se estivesse habituada a percorrer distâncias sendo perseguida por bandoleiros no agreste. Equilibrou o corpo delicado e magro, firmou as mãos na rédea, ouviu atenta as orientações do instrutor. E trotou feliz. Ao finalizar o trajeto, voltou para o fim da fila — e assim ficamos até o horário de recolher os animais. Voltamos outras vezes àquela chácara. Agora, M. sempre me diz que gostaria de ter um cavalo.
Nas férias escolares, íamos à casa dos avós maternos, nas lonjuras de uma roça que havíamos deixado na tentativa de uma vida melhor em C., esta cidade que falseia entre a soberba e a miséria. O pai, às vezes, nos acompanhava na longa viagem de ônibus. Nas moradas — e foram muitas, até o suicídio do meu avô —, havia sempre um rio, um parreiral, vacas e dois ou três cavalos. A algazarra dos tios — sujeitos matutos, mas delicados conosco, crianças já urbanas — completava a festa de uma estranha família. Um dos tios ensinou-me a andar a cavalo. Mantínhamos uma alegre intimidade. No lombo de pangarés, percorríamos o potreiro, onde as vacas bafejavam nas manhãs geladas de julho; seguíamos pela beira do rio e subíamos até a roça de feijão e milho. Conversávamos sobre a nova vida na cidade, sobre a escola, sobre a nossa reduzida existência. Ele contava-me de seus dias sempre iguais por aqueles grotões — o plantio, a colheita, a espera pela chuva. Éramos boas companhias. Nas raras vezes em que o pai nos acompanhou, nunca o vi chegar perto dos cavalos. Talvez tivesse medo de levar um coice.
Encontrei o pai caído na rua há algum tempo. Após a parada diária no bar, o corpo velho e estropiado pelo álcool não aguentou o repuxo. E tombou no meio-fio. Encontrei-o como um feto abortado, diante do espanto alheio. Era uma tarde de sol, e a claridade escancarava nossa história de vergonhas e violências. Após levá-lo para casa, marquei uma consulta com um clínico geral. Notei a pele escurecida na perna inchada. Parecia apodrecer aos poucos. O médico — um homem vigoroso e animado — explicou que o pai precisava parar de beber, alimentar-se melhor e tomar alguns remédios. Algo que me pareceu bastante óbvio. Ao examinar a perna do pai, disse que era apenas um problema de circulação, algo relativamente simples de resolver. Notei que o médico estacionou o olhar sobre a cicatriz, já meio escondida na canela, como se os estragos do alcoolismo tentassem apagar o passado. “Foi um coice”, disse o pai, com certo orgulho na voz abobalhada. Eu completei a história: “Ele levou um coice certeiro de um cavalo quando era jovem”. O médico apenas balançou a cabeça, esboçou um leve sorriso, como se aquela informação não fizesse nenhuma diferença.
Depois do suicídio do avô materno — abandonou o corpo a balançar na solidão de uma corda —, deixamos de visitar a família na roça. Eu e meu irmão já entrávamos numa juventude de alvoroços etílicos e sexuais. Aquele mundo arcaico nada nos interessava. Aos poucos, de tudo restou apenas a lembrança. Nunca mais andei a cavalo — nem mesmo nos passeios com M. à chácara de almoços pantagruélicos e animais dóceis. Apenas a observo, com o encanto paterno nos olhos. O avô não sabe do amor da neta pelos cavalos. Ela não sabe da cicatriz do coice na canela do avô. São dois estranhos unidos por uma história que nunca se completa.
Às vezes, quando estou à janela do quarto, vejo o pai a caminho do bar logo cedo. Ele mora a poucos metros da minha casa. Caminha com certa dificuldade, rumo à derrocada final. Parece um sujeito resignado. Arrasta as pernas lentamente, com esforço. Os problemas de saúde estão controlados. A cicatriz continua no meio da canela, agora escurecida pelas debilidades do corpo. Tornou-se um homem solitário. Quando passa diante da minha casa, também ladeia o terreno que abriga o solitário cavalo. O cavalo segue ali, ruminando, abanando o rabo para espantar as moscas. Trota lentamente pelo seu reduzido mundo. O pai claudica pela rua, puxa o corpo com vaguidão.
Somos todos animais solitários.