Quando não sei muito bem o que fazer, olho para lugar nenhum e volto ao passado. Uma fuga a um mundo que há muito deixou de existir, mas está o tempo todo presente, arranhando meu corpo magro e em franco declínio. Estávamos diante de um homem miúdo, notadamente tímido, mas conhecedor do campo de batalha. “É uma decisão a ser tomada”, disse com convicção. Depois, outras palavras se acumularam na pequena sala um tanto claustrofóbica decorada com fotos de animais e rações variadas. Ela, ao meu lado, não disfarçava o pânico e a tristeza. Eu, num mutismo covarde diante da morte, pensava num cachorro laranja.
A professora nunca desconfiara de que eu era um idiota cromático. Ou evitava escancarar diante dos demais a minha ignorância — uma das tantas que me acompanham desde sempre. Eu não sabia as cores, não as enxergava, não as vislumbrava na desgraçada vida infantil. Um arco-íris era um urubu zombando de mim entre nuvens. Um dia, pintei um cachorro de laranja. Não sei exatamente com que cor gostaria de lhe tingir o pelo no papel ordinário da escola pública. Mas, aos meus olhos daltônicos, tortos e desgraçadamente estúpidos, laranja (que até hoje não sei muito bem de que cor se trata; comparo-a às frutas na quitanda) me parecia uma coloração adequada àquele típico guapeca escolar. Pintava de laranja sem pensar na cor, sem imaginar que estivesse tingindo o cão com cores inexistentes. Queria apenas demonstrar uma segurança que nunca tive. Se fosse pintor, minha obra seria uma tela em branco, pendurada de ponta-cabeça numa parede cinza.
Pensava neste cachorro laranja quando o veterinário disse que era uma decisão a ser tomada. Eu não tinha de tomar nenhuma decisão. Nunca fui muito bom nisto: tomar decisões. Estava ali por um imenso amor, este sentimento que às vezes nos leva ao céu dos cachorros, mesmo sem acreditar em céu e nunca ter possuído um animal de estimação. Continuar com as tentativas de tratamento ou submeter M. à eutanásia canina: esta era a decisão a ser tomada. Os medicamentos não davam sinais de que um milagre pularia o muro em direção aos fundos da casa, onde a cadela grande e amorosa agonizava. Então, o fim menos doloroso entreolhava como a melhor saída. Quando não há saídas, a pior acaba sendo a melhor, por mais contraditório que nos pareça.
Entre idas e vindas em frases curtas, agônicas e carregadas de uma tristeza imensa, decidiu-se pela eutanásia. Eu apenas observava em silêncio. Minha irmã tinha horror a cachorros. Ao menor latido, encolhia-se em busca de algum refúgio. É fácil entender: um dia, fora atacada por uma canzoada no terreiro da casa da avó materna. Era apenas uma menininha indefesa soterrada por quatro ou cinco cachorros. O pânico instalou-se no corpo até o dia em que morreu jovem, aos 27 anos, num hospital frio e silencioso. Ali, minha mãe uivou para a lua feito uma cadela ferida ao saber que a jovem filha havia morrido. Nunca se esquece o urro de uma mãe que perde seu filhote. Talvez seja a mistura da dor da saudade com o sentimento de incompetência de não ter conseguido evitar a morte prematura. Mães não entendem que a batalha com a morte é sempre uma batalha perdida.
Depois, a mãe também morreu soterrada pelo câncer — esta espécie de cão faminto e selvagem. Coisas estranhas teimam em nos soterrar de tempos em tempos.
Em silêncio continuei até definirem todos os detalhes da eutanásia. Nada muito complexo. Seria cremada. Poderíamos ficar com as cinzas ou seriam descartadas num depósito sanitário. Uma empresa especializada se encarregaria de tudo. O veterinário iria buscar e entregar M., cujo nome em grego significa a boa mãe. Já em hebraico, é água e vindo de Deus. Se palavras fazem algum sentido, ela estaria voltando a Deus — cachorros também têm direito ao paraíso divino. Afinal, os humanos não são nossos melhores amigos em nenhum lugar. Menos ainda na eternidade. Nada como o melhor amigo a nos acompanhar na modorra celestial.
M. estava nos fundos do quintal — espaço onde recebia carinhos e atenção quando a casa se transformava num espaço ruidoso e amoroso. Os netos chegavam à casa dos avós arrulhando feito pombos famintos. M. se sacudia toda em volta da criançada. Era grande e meio desajeitada. A boca imensa expelia apenas uma grossa e pegajosa baba. As mordidas involuntárias eram raras. Era uma festa em volta de uma cadela.
Quando o veterinário chegou, não havia nenhuma criança na casa. A morte é coisa dos adultos. M. respirava com dificuldade contra o piso frio e indiferente ao seu sofrimento. Já não conseguia equilibrar-se nas quatro patas. A urina escapava-lhe com facilidade. O corpo cambaleava na agonia do fim. Pelos cálculos, poderia viver mais uns dois ou três anos. Pelos cálculos, minha irmã poderia viver mais uns sessenta anos. A vida não é justa nem para cães, nem para irmãs.
O veterinário era um sujeito afetuoso. Acarinhou o corpo molenga de M., conversou baixinho com ela como se as palavras pudessem aliviar um pouco da dor. Ao lado, R. sofria imensamente. Eu, sem saber muito bem o que fazer, apenas observava em silêncio e pensava num cachorro laranja. Sempre penso neste cachorro laranja — meu animal de estimação inexistente. Tenho a vantagem de que ele só morrerá comigo. Será minha companhia até o fim dos dias. Nem todo cálculo é injusto.
O último abraço envolveu M. em direção ao carro estacionado diante do portão. O veterinário a carregou com cuidado. Ela não se opôs ao último carinho. Aninhou-se com delicadeza, na certeza de que nunca mais retornaria à algazarra familiar dos fins de semana, animados a churrascos, partidas de truco e conversas em que todos falam aos gritos e ao mesmo tempo, numa gostosa algaravia.
Quando M. partiu, restou a tristeza num choro amparado nos ombros da mãe. Ao lado, eu esquadrinhava o vazio do quintal. Em breve, as crianças estariam por ali. O incômodo silêncio seria quebrado pela alegria a pulsar na ânsia da vida.
Antes de ir embora, notei vários cães a latir nos terrenos vizinhos. Um deles era laranja.