O bordel de Gutenberg

Um livro nas mãos de um leitor desconhecido pode se transformar em maldição
01/03/2011

A vida é uma sucessão de equívocos. Um amontoado de mal-entendidos. O estrondo da segunda lâmpada seguida comprovou a necessidade de um eletricista. O porteiro — espécie de faz-tudo — trouxe escada, caixa de ferramentas e uma surpresa. Do alto, com o suporte a rodopiar sob o comando da chave de fenda, tecia frases banais e cotidianas até chegar à inevitável pergunta: “Já leu todos estes livros?”. E apontou o queixo obtuso em direção às prateleiras que escondem as paredes do escritório. Num cálculo precário, precisaria viver inúmeras eternidades para dar conta de uma ínfima parte da minha biblioteca. A vida é também colecionar excessos e obsessões.

Após se constatar a péssima qualidade das lâmpadas utilizadas, ele chegou. Aquele que cravaria em mim a incômoda sensação de deslocamento no mundo. À porta, o olhar de gato espichado para dentro do escritório, o vigia responsável pela garagem do edifício. Não o conhecia. Carregando uma falsa timidez, sem ser convidado, entrou com passinhos desconfiados. “Este aí vive lendo também”, disse o improvisado eletricista, com um balançar de cabeça ao encontro do visitante. Entre ambos, a triste figura: eu, que só desejava resolver o problema da escuridão. Antes de qualquer palavra, o sujeito já examinava com dedicada atenção as milhares de lombadas nas prateleiras. “É muito livro.” A frase corriqueira saiu-lhe enquanto os dedos acariciavam um romance do espanhol Javier Marías. “Já leu todos?”. Apenas sorri e disse que duvidava um pouco da eternidade. Sem entender, ele continuou a examinar as estantes. Era nítida a sua curiosidade — um felino a percorrer quilômetros na noite solitária em busca de uma presa qualquer.

A lentidão preenchia cada espaço entre a ponta dos dedos e os livros. Lá fora, o mundo seguia indiferente a nós. “Ele é compositor e poeta”, confidenciou o eletricista. “E canta também.” Eu recebia o breve e improvisado currículo sem exibir a inquietação que me rondava. Já imaginava o momento em que sacaria um verso do bolso do uniforme e me estenderia a desejar uma atenta leitura. “Eu leio o tempo todo, leio de tudo, qualquer coisa, qualquer livro”, disse com as mãos longe dos bolsos, mas com o pedido a saltar dos olhos. Resumi a conversa a um inofensivo “isso é muito bom”.

Algo naquele homem me incomodava: o excesso de silêncios, a curiosidade visível, a maneira de mexer as mãos, a dedicação às lombadas dos livros, o sorriso permanente no canto da boca, o tom de voz similar ao de alguém que conheço. Não sabia dizer, mas era-me impossível ficar à vontade.

O eletricista parecia se divertir com a situação. Manejava tudo com lerdeza — lesma cansada na tarde quente. Desejava congelar o tempo, o encontro. Teria feito de propósito por me ver todos os dias receber livros na portaria? Queria descobrir algo? Mas o quê? Sempre que me encontro em situações desconfortáveis, imagino teorias conspiratórias.

Da porta, o intruso, já afastado das prateleiras, me olhava, pedia algo. Quase implorava. Em silêncio, puxei a caixa que mantenho à entrada do escritório. Ali, livros para presentear amigos, doar a bibliotecas, espalhar por aí. “Leve este aqui. Não precisa devolver. É sempre bacana encontrar leitores.” As palavras e a oferta agitaram-no. O corpo todo respondeu ao impulso. Da caixa, retirei o livro responsável, talvez, por uma maldição: Memória de minhas putas tristes, de Gabriel García Márquez. Não sei por que escolhi este livro. Talvez porque o título chamativo o encorajasse mais à leitura. Ou talvez para completar o mosaico de equívocos que me acompanha sempre que deparo um leitor desconhecido.

Após fincar os olhos na capa — um senhor de costas a caminhar em direção ao infinito — agradeceu-me com um fio de voz que logo se diluiu no trajeto entre a porta do escritório e a do elevador. Ao meu lado, o eletricista me oferecia um fiapo de escárnio grudado na cara. Feliz com o meu espanto, a minha insegurança, ele sussurrou, sem perder a chance do sarcasmo: “Ele é evangélico fervoroso. Compõe versos para Deus. Ainda vai chegar a pastor”. Vi um raio atravessar toda a biblioteca e explodir a lâmpada. A escuridão na tarde ensolarada tomou conta de tudo. Não tive tempo para dizer nada. O eletricista já carregava a escada e as ferramentas. Fiquei sozinho a mastigar a infeliz escolha, a remoer o equívoco.

Imaginei o homem a ler o livro, a encarar a descrição de sodomia logo nas páginas iniciais, o périplo do personagem de 90 anos, sedento por uma virgem adolescente na cama de um bordel imundo. Teria aberto o livro? Teria chegado à página 65 e lido “entendi a frase como um presente do diabo”? Eu seria o mensageiro da perdição, o guardião da luxúria senil, o fornicador ocioso na tarde vadia?

Agora, sempre que o encontro na entrada do edifício, ambos baixamos a cabeça, disfarçamos o cumprimento. Não há animosidade. Somente indiferença. Sinto que me observa meio de lado, com a face inclinada. Somos dois homens a arrastar a certeza de que a vida é uma absurda sucessão de equívocos.

Crônica publicada originalmente no site Vida Breve (www.vidabreve.com), em 24 de janeiro de 2011.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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