Sou daltônico. O mundo me parece quase sempre um lugar desbotado, um vidro fosco, uma incômoda lente de contato. Pretendo escrever um livro com minha filha. Ela tem oito anos. Eu já passei dos quarenta. Vivemos vidas distintas — separados pela perspectiva que nos resta. Formaremos uma dupla: eu escreverei; ela, ilustrará. A ideia não é minha. Uma manhã, ela enroscou-se em mim: “Pai, vamos escrever um livro juntos?”. Minha primeira incursão pela literatura infantojuvenil. De início, temos um impasse. Ela não sabe o que é impasse. Exige uma história de princesas. Eu não abro mão de um pai daltônico sob o olhar irônico da filha. É muito fácil ironizar um pai daltônico. Basta jogá-lo numa piscina de bolinhas, entregar-lhe uma caixa com mais de três lápis de cor ou apontar-lhe um arco-íris a despontar na janela azul.
Da sacada — um improvisado escritório — observo o bando invadir a sala. Minha filha é a líder. Logo atrás, três meninas de idades próximas. Pequenos seres a desvendar as armadilhas diárias. Vão direto ao quarto — espaço sagrado de segredos delicados. Logo, surgem rindo. Minha filha aponta em minha direção. Abandono o torpor do trabalho. Giro a cabeça de encontro ao bando sorridente. Ela está lá, uma janelinha na arcada superior, envolta numa risada gostosa. Na palma da mão, o meu tormento: um punhado de lápis de cor. “Que cor é este lápis, papai?” Antes que eu arrisque qualquer palpite, ela está às gargalhadas. “Meu pai é tautônico”, anuncia com superior sabedoria às amigas. “Ele é tautônico. Os tautônicos não sabem as cores.” Sou obrigado a contra-atacar: “Não sou tautônico, filha. Nunca fui. Sou daltônico”. Ela ignora minha queixa semântica.
Também sou míope. De tempos em tempos, estou diante do oftalmologista para, invariavelmente, aumentar o grau das lentes. Além de ver o mundo na palheta de um pintor louco e atrapalhado, a vida se movimenta desfocada a poucos centímetros. Quando anuncio que irei ao médico, minha filha dispara: “Diga pra ele consertar o teu olho pra você enxergar as cores”.
Vamos trabalhar no livro de maneira independente. Eu escreverei trechos e os entregarei à ilustradora. Ou seja, minha filha. Ainda não definimos o ritmo do trabalho. Lento, se depender de mim. Ansioso, no caso dela. Tenho apenas algumas linhas rabiscadas num caderno que nunca me abandona: “Meu pai tem os olhos tortos. Enxergam de um jeito estranho. Parecem desajeitados para ver o mundo. Para meu pai, a vida é uma bagunça de cores — um cesto cheio de pontos luminosos, de vagalumes mancos a piscar sem direção. Meu pai nunca poderia construir um arco-íris. O arco-íris do meu pai vive de ponta-cabeça. Meu pai é daltônico”. São frases soltas, ainda em busca de um rumo para uma história cujos sentidos precisam se multiplicar.
Nos próximos dias, pretendo finalizar os primeiros trechos. Ela reclamará da história. Perguntará da princesa, dos castelos, do príncipe, da carruagem. Mentirei que logo surgirá uma linda princesa em nossa história. Talvez surja. Nunca sabemos muito bem por onde andarão nossas loucuras. Mas será um princesa de cabelo azul, olhos lilases, vestido verde musgo, sapatos roxos, meias amarelas, brincos vermelhos e batom bege. E talvez ela seja tautônica.