O álbum incompleto

Revisitar figurinhas da Copa de 1982 se transforma em oportunidade para questionar quantas alegrias cabem numa infância
01/03/2022

Tenho muitos álbuns. Guardo parte da infância em caixas plásticas. Dizem que o plástico preserva resquícios da eternidade. Agora, pedem-me um texto sobre a Copa do Mundo de 1982. Será publicado num país distante, cuja língua me parece um hieróglifo pintado numa improvisada caverna. Talvez não seja um texto sobre os jogos, resultados, a competição. Não entendo muito bem o que me pedem. Mas por que pediram pra você, papai? A voz empostada a ganhar contornos adultos tem apenas doze anos e me acompanha na rotina dos dias. Ele se esforça para parecer comigo, sem saber que somos um espelho de dupla face. Ironicamente, eu o levo ao treino de futebol. Não tenho uma reposta. Digo apenas que não sei, talvez sorte, talvez coincidência. E sobre o que vai escrever? A dúvida permanece no olhar do menino de cabelo escorrido na testa. Nunca sei sobre o que vou escrever. Tudo nasce do fundo de uma memória que teima em não se apagar.

Arrasto as caixas pelo quarto, sento no chão e a pergunta movimenta-se na tarde abafada: Quantas alegrias cabem numa infância?

Um chiclete sorri e chuta uma bola na capa do álbum. As traças mastigaram com métrica as bordas do papel. Meses antes do início da Copa, uma marca cujo nome nos parecia uma inusitada ironia (Ping Pong) anunciara que os sabores hortelã, tutti-frutti e morango trariam os craques de todas as seleções. Ou quase. As figurinhas — risíveis se comparadas às atuais autocolantes — eram frágeis e invariavelmente tinham erros de ortografia.

Então, é sobre isso que você vai escrever? Não sei, filho. Acho que ninguém se interessa por um álbum de figurinhas prestes a completar quarenta anos.

Formigas trabalhadeiras, rumávamos ao boteco do Gabito — um velho taciturno e orelhudo — a tilintar moedas nas mãos. Uníamos as forças para comprar caixas e mais caixas de chicletes. Nossas bocas em constante movimento — bois a ruminar um pasto indestrutível — não davam conta da ambição pela busca do álbum completo, a perfeição em forma de papel. Jogávamos vários chicletes intactos num pote dentro da geladeira — uma tentativa de ampliar a sua eternidade. Não buscávamos o prazer do sabor açucarado, mas o rosto desconhecido de jogadores cujos nomes em geral não sabíamos pronunciar.

É um assunto muito legal. Eu também tenho álbuns guardados. Meu filho me olha com a certeza de que me anima a seguir com a ideia para o texto que me ronda desde a infância.

Um incômodo desequilíbrio percorria aquele álbum. O Brasil com seu elenco completo nas páginas iniciais povoava nossa imaginação de criança. Sonhávamos ser jogadores, com estádios lotados, com a loucura das torcidas. Em seguida, dezessete seleções (ironicamente, alguns destes países se dividiram ou, simplesmente, desapareceram, como é o caso da Iugoslávia) com onze jogadores, a bandeira e um canhestro mascote. Os desenhos, assim como as fotografias, não eram dos melhores. Ao final, seis seleções — cinco delas estreantes em Copas — dividiam as páginas com apenas quatro jogadores e a bandeira: Honduras, El Salvador, Nova Zelândia, Kuwait, Argélia e Camarões.

Durante um animado jogo de bafo — no qual cada um buscava artimanhas para enganar o adversário e surrupiar figurinhas —, decidimos sem objeções: torceríamos também para aquelas diminutas seleções de apenas quatro jogadores e uma assimétrica bandeira. Chegamos a ter pena da Nova Zelândia, massacrada pelo Brasil com um golaço de meia-bicicleta de Zico. Mas concordamos que Ruffer, Summer, Turner e Woodin nunca seriam páreo para Zico, Sócrates, Falcão e Éder. Todos foram perdoados.

Nossa torcida de pouco adiantou na maioria dos jogos. Mesmo assim, nos orgulhávamos — uma matilha de meninos meio desnutridos, cujos sonhos abraçavam invariavelmente uma bola de futebol — da inusitada invencibilidade de Camarões: três heroicos empates. Uma seleção de quatro jogadores e invicta. Nem mesmo a maior derrota em uma Copa do Mundo (os folclóricos 10 x 1 da Hungria sobre El Salvador) foi capaz de arrefecer nossa paixão pelos exíguos times. O gol de El Salvador foi marcado por Ramirez Zapata. Mas ele não estava em nosso álbum.

A Argélia, sim, nos causou muitas alegrias. E não se classificou para a próxima fase devido ao desprezível detalhe do saldo de gols menor que o da Áustria. Anotava com letra trêmula tudo na tabela das páginas centrais do álbum. O rigor me acompanha desde sempre. Na estreia, 3 x 2 no Chile, nosso vizinho famoso pelos vinhos. Depois, derrota para a Áustria. Para, finalmente, a glória eterna para nossos quatro jogadores: Cerbah, Zidane (era zagueiro e muito diferente do homônimo famoso), Belloumi e Gamouch. É possível que algum nome esteja grafado errado, mas preciso confiar nas figurinhas que guiaram parte da minha infância.

Ganhamos: 2 x 1. Gols de Belloumi e Madjer, que não estava em nosso álbum. No time da Alemanha, faltava-nos a figurinha do goleiro Schumacher. Mas isso não pode ser usado pelos alemães como desculpa para a derrota.

Quantas alegrias e tristezas habitam um álbum de figurinhas?

A pergunta reverbera na quietude da casa enquanto o procuro quarenta anos depois de completá-lo. Ou quase. Está puído e carrega as pegadas da minha infância. Entre as 300 figurinhas, Zico tem o olhar assustado (talvez a prever o desastre que o aguarda); Camacho está entediado; Kempes esqueceu de cortar o cabelo, ou ao menos de penteá-lo; Breitner carrega uma barba desalinhada; Zoff lembra um avô; McDermott acabara de escapar do manicômio; Blokhin sonha fugir com a noiva para um país livre; Van der Eycken precisa usar aparelho ortodôntico; Meszaros tem cara de pirata; Pasic pensa na filha; Jalocha trama uma maneira de se livrar da sogra; Jurkemik é um espião disfarçado de jogador de futebol; Janvion queria ser cantor; Pezzey está arrependido; Rough tem cara de vendedor de seguros; Jennings também; Velazquez não esquece os anos 1970; Caszely deseja ser senador; Urquia é curioso; Rugama é feio; Turner também; Al Jasem tem o maior nariz da Copa; Cerbah é a cara de Belloumi (ou seria do Gamouch?); Tokoto é a última figurinha.

Noto que faltam quatro jogadores: Schumacher, Millecamps, Meeuws e Buljan. Tenho muitos álbuns. Nenhum está completo.

Vamos fazer o álbum da próxima Copa, papai?

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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