É algo simples, mas pode abarcar uma vida. O movimento delicado traz aconchego e uma indestrutível certeza de proteção. Nem sempre os braços veem antes do beijo, o roçar dos lábios é a intimidade escancarada, mas é ali — no calor do toque das mãos no corpo, na pressão dos movimentos — que a magia acontece: o abraço é esquecer que do outro lado mundo caem bombas, que estilhaços de humanos voam feito almas pelos ares. A realidade do abraço é a esperança de uma paz duradoura, uma paz íntima, restrita a dois corpos que se entrelaçam, esquecidos de que a convulsão do mundo também os sufoca.
Ela chegou no horário. O olhar nada indicava, talvez uma leve curiosidade. A silhueta contra a luz no vazio da porta desenhava uma linda mulher, esguia e charmosa. Na vastidão ao redor, a minha história — a infância entranhada num bairro que, como toda a cidade, cresceu de maneira espantosa — ainda pulsava em pequenos detalhes: o carreiro que leva à antiga casa assombra meus passos de menino, o mesmo menino que agora, feito homem, a espera à mesa da cafeteria. Havia muitos anos que não retornava àquela parte de C. Era um retorno estranho, num encontro marcado ao acaso, no susto do esbarrão dias antes na entrada de um teatro. A vida, como sempre, dá cambalhotas e nos leva de volta ao lugar de onde nunca saímos. Mas agora a história seria diferente: nada de trabalho na infância, nada da violência do pai, nada de uma vida miserável em todos os sentidos. Agora, alguém cruzava o batente de uma porta e vinha ao meu encontro. O que seria de nós?
A mãe tinha mãos feito pás de escavar a terra. Era isto: mãozorras que reviravam o solo em busca da sobrevivência possível. Sempre admirei aquelas mãos. Eram o sustento, o amparo contra o mundo — aquele nosso ínfimo mundo. Mas nunca o carinho. Dos dedos não saía a delicadeza, revestidos sempre da brutalidade aprendida numa roça arcaica e miserável. Os tapas eram frequentes. Nossa irmã — uma menina magra e assustadiça — levava tabefes todos os dias, uns bofetões a zunir nos ouvidos e a deixar-lhe a vermelhidão a pulsar nas bochechas. Nunca entendi de onde vinha tamanha ira contra a menina que, na juventude, morreu de maneira misteriosa. Não havia carinho na pele grossa, nos dedos nodosos, da mãe. O movimento de um abraço era algo impensável. O abraço, esta palavra simples, a mãe escrevia com um inadequado esse: abraso, transformando, sem querer, o substantivo em verbo que, ao fim, relega tudo a cinzas. A caligrafia analfabeta era incapaz de ultrapassar a ausência quase insuportável.
As mãos espalmadas nas minhas costas, o carinho nos ossos saltados da magreza permanente. Todos os dedos na geografia anêmica da minha pele. O cheiro nas redondezas da nuca a irradiar o paraíso no fim da tarde. Daqui, onde estou, espécie de porto de chegada, nunca de partida, ouço o silêncio do mar a arrebentar ao longe. A mansidão da vida espalha-se por todas as fibras do meu corpo. Lembro do primeiro abraço como se eterno fosse na duração de todos aqueles segundos.
Houve o abraço mudo — o encontro de dois corpos indiferentes um ao outro diante do pavor. A irmã estava morta. Lá no hospital, na madrugada sem fim, a vida abandonou o corpo. A perda nos entregava uma réstia de intimidade. O único abraço de uma vida inteira. Abracei-o meio sem jeito — dois homens altos, magros e desajeitados — e, num espasmo de voz, disse nossa irmã morreu. Não éramos íntimos. Éramos irmãos. Naquele início de manhã, não choramos. No arroio seco, os animais morrem de sede. Apenas nos envolvemos num abraço silencioso, repleto de tristeza e solidão.
O perfume suave atiçou-me as vontades do corpo. Próximos, esquadriando a volúpia das possibilidades, os corpos estáticos um de frente para o outro. O calor nos chega aos poucos. As mãos roçam o desejo ao alcance dos olhos. Estávamos no estacionamento da cafeteria quando aqueles dois braços — inesquecíveis na intensidade do prazer — envolveram-me. Agora, anos depois daquele encontro, ainda sinto que ao redor o mundo resolvera parar a translação e o sol, inerte por entre as árvores, desistira de nos entregar a escuridão da noite.
Houve o abraço de desespero. Quando o pai levantou o murro feito adaga a nos eviscerar, eu pulei sobre ele. Não havia nada de heroico, apenas estava cansado de ver a mãe levar socos e pontapés. Naquela noite de terror, tomei coragem e voei feito uma corruíra assustada em direção à sombra monstruosa que se formava na parede de casa. Não era uma casa; era um calabouço. O corpo a transbordar álcool e ódio do pai recebeu o meu desprezível abraço. Não havia escapatória: aquela vida era incapaz de produzir qualquer afeto. Sabíamos que aquele abraço não passava de um pedido de socorro. Por mais estranho que pareça, naquela noite o pai trancafiou os demônios em algum lugar, sossegou as patas e roncou escuridão adentro. Talvez eu os carregue comigo, roubados durante os segundos em que nossos corpos estiveram tão próximos como nunca mais na vida.
Quando eu a vi pela primeira vez, meu severo daltonismo identificou em seus olhos a imensidão do azul, um tom de azul, talvez, que só eu enxergasse, o azul à minha maneira. Acolhi-a do útero materno e a envolvi em meus braços magros. Olhou-me com genuíno interesse: quem é este?, deveria estar se perguntando ao encarar o início da aventura da vida. Foi algo meio desengonçado, que nem se pode chamar de abraço. Eram apenas meus braços a envolvê-la com delicadeza extrema, um cuidado exagerado de um homem que começava a aprender a ser pai. Não havia brutalidade, não havia gritos, não havia murros, não havia desespero. Havia uma imensidão azul à minha frente.
Sim, é algo simples: abrem-se os braços, forma-se uma espécie de dois arcos a buscar o outro lado. Abraços carregam a emoção do encontro, a incerteza da despedida, a expectativa do reencontro. Não era uma volta ao passado: eu apenas estava num território conhecido desde sempre, desde a infância de pés descalços. Aquelas terras eram os caminhos até chegar novamente ali, após uma volta ao redor do planeta. Nunca reneguei, mas jamais fiz questão de voltar. Por acaso, estava ali, naquele fim de tarde, diante daquela mulher de beleza solar, e via correr ao redor a sombra esquálida de um menino. Corria sem direção em desabalada felicidade. Todo abraço é uma travessia.