Éramos ladrões. O muro baixo, a algazarra desproporcional do recreio, a vastidão lá fora, a vitalidade do corpo: tudo nos impulsionava para longe da escola nas tardes esquecidas. Se nossos pais não estudaram, o que fazíamos ali? Nas proximidades, a languidez do parque, o lago, o gramado, as canchas de futebol de areia, a liberdade escancarada. E, mais importante, a possibilidade de uma vítima. Ao olhar desatento do inspetor, o bando famélico e desconjuntado, arredio ao banho, saltava em busca de uma alegria fugaz. Na rua, o som da boca, os dentes cariados transbordavam alegria. Socávamos o ar feito um Pelé marginal. Tínhamos alcunhas cuja gênese desconhecia: Ximbica, Neguinho, Astronauta, Pateta e Barata. A pouca eficiência da escola e um descaso pessoal os faziam quase analfabetos. Aquele mundo não lhes pertencia. Eu me agarrava aos livros como se a salvação estivesse em não separar sujeito e verbo com vírgula. Mas jamais os abandonava. Afinal, éramos ladrões. E eu os liderava.
O cigarro sem filtro a bailar entre os dedos de criança. Tínhamos entre doze e treze anos. Eu era o mais novo, o mais magro, o mais esperto. A fumaça rodopiava pelo corpo. A carteira vermelha nos seduzia: acima da marca Craque — com o funesto slogan “uma grande jogada” —, o atacante disparava um chute certeiro em direção ao gol imaginário. Além de ladrões, quase todos sonhávamos com estádios cheios, dribles inesquecíveis, fama e dinheiro do futebol. Mas roubar, muitas vezes, é mais fácil do que fazer um gol.
Fruta, chocolate, pão, roupa, cone de sinalização, livro. Carrego uma lista enorme de pequenos furtos. A mãe, obviamente, desconhecia que abrigava no lar abençoado um desprezível delinquente. Com a fé impregnada pelo corpo, arrastava os três filhos todo domingo à modorrenta missa e, depois, às infinitas aulas de catequese. Tinha certeza de que reservava para mim um lugar especial no paraíso. Não desconfiava de que o demônio roçava as guampas na epiderme delicada deste trapaceiro coroinha. Invariavelmente, nas coxias da igreja, estufava os bolsos com hóstias consagradas. Como não tinham gosto de nada — a salvação sempre me pareceu um tanto insossa —, temperava-as com um punhado de sal. Às mãozadas, enchia a boca imaginando o sabor de um elma chips. O paraíso sempre cabe num pacotinho plástico.
O menino loiro parecia pressentir o perigo. Cabisbaixo, abraçava a pasta branca do colégio particular que estampava um dedão a fazer positivo ao mundo. A um mundo que desconhecíamos. Era original e bem cuidada. A nossa, comprada num camelô no centro de C., falsificada. Ao nos avistar, não podia recuar, correr. Presa fácil numa savana desigual. Sentíamos inveja, raiva e, ao mesmo tempo, pena daquele menino de cabelo bem penteado, uniforme alinhado e corpo asseado. Éramos o seu oposto: seis vândalos estropiados a sua volta.
Vamos bater em você. A voz esganiçada do Astronauta fincou o pavor nos olhos do garoto. O círculo se fechava. Apenas o olhávamos com a sanha dos cruéis. O parque vazio no meio da tarde nos protegia. Muitos anos depois, assisti com meus filhos a uma animação em que um pequeno leão é cercado por hienas famintas. Lembrei daquela tarde. Eu era uma hiena. Apavorado, o menino abriu a pasta e tirou o estojo com canetas coloridas. Podem levar tudo, disse com o choro entalado na garganta. Ximbica deu-lhe um safanão na nuca e o espantou para longe. Jamais esqueci da corrida desesperada daquele menino com o sinal de positivo na pasta a abanar em minha direção.
Tínhamos tempo até o horário de voltar para casa após mais um dia de aula. Na extremidade do parque, às margens da rodovia, carrinhos de bate-choque, um chapéu mexicano e uma risível roda-gigante eram um espaço proibido a nós. Ali, só pagando. A improvisada lanchonete abrigava o objetivo do nosso ataque: o freezer e seus sedutores potes de sorvete. Num domingo, passei algum tempo sentado na grama arquitetando uma maneira de roubar um daqueles potes. Não queria apenas uma bola de sorvete. Desejava um carregamento. Sempre fui um ladrão ambicioso. Quando expliquei o plano ao Neguinho, ele me olhou com certa incredulidade. Mas não tínhamos nada a perder.
Minha vida criminosa durou pouco. Aos treze anos, tive de mudar para o turno da noite. A mãe, mesmo com a ajuda de Deus, precisava dos filhos nas despesas da casa. Trabalhava o dia todo numa fabriqueta de móveis. À noite, encarava a precariedade da escola pública. Nos finais de semana, a danceteria, a possibilidade de um beijo, do toque num seio disponível, as caipiras gosmentas de groselha me abraçavam com volúpia. Troquei o fedorento Craque pela sutileza das tragadas em uma carteira diária de Free. Os porres se repetiam com velocidade assustadora. Aos trezes anos, já era um homem magro, sem barba e daltônico. A cada bebedeira, aumentava a semelhança com meu pai. A única diferença é que eu não batia na minha mãe.
Havia apenas um funcionário no capenga parque de diversões. Nenhum cliente. Os carrinhos de bate-choque estacionados a um canto; a roda-gigante inerte a contemplar o tráfego na rodovia; o chapéu mexicano com as correntes a escorrer solidão. O plano era audacioso: ao menor descuido, arremessaríamos Barata dentro do freezer por sobre a frágil grade de proteção e o seguraríamos pelos pés. Ao abraçar um pote de sorvete, Barata seria içado. Nossa improvisada grua era orelhuda, sardenta, magra e tinha pés enormes. O que parecia complexo mostrou-se simples. Despreocupado, o funcionário — um homem miúdo de jaleco branco — afastou-se do freezer. Parecia contemplar o lago com seus ridículos cisnes artificiais que, nos finais de semana, planavam pelo lago a levar casais apaixonados pelas águas poluídas.
Com destreza, jogamos Barata no freezer e o agarramos com todas as forças pelos pés. Qual deles? A pergunta sufocada na imensidão gelada. O quê? Qual sabor? Qualquer um, estamos roubando, disse num misto de pressa e desespero. Os poucos ruídos foram suficientes para tirar o homem da sua contemplação. Quando as orelhas de Barata despontaram para fora do freezer, ouvimos os gritos. Ei, seus ladrõezinhos de merda. Corremos. Barata abraçado ao pote de sorvete. Não larga por nada neste mundo, eu ordenava. Ximbica olhava para trás e mandava o homem tomar no cu. Astronauta destilava seu pessimismo corriqueiro. Estamos fodidos. Desta vez, vamos nos foder. Eu apenas incitava meu bando. Corram, corram, corram. Após a breve perseguição e convencido da derrota, o funcionário do parque soltou um urro: seus filhosdaputa. Neguinho, o mais desbocado do bando, parou de repente, tirou o sexo para fora e gritou de volta: sim, minha mãe é puta pra caralho, mas você é um idiota. E deu a gargalhada que às vezes nos assustava.
(Encontrei meus amigos de crime poucas vezes após o fim da nossa quadrilha. Até a morte na adolescência, Ximbica perambulava feito um zumbi pelas ruas próximas à escola. Trocou o Craque pelo crack. Neguinho foi preso por matar um sujeito numa briga. Astronauta virou evangélico pelas mãos de uma namorada. Barata e Pateta eram irmãos e nunca mais os vi. Ninguém virou jogador de futebol. Não fizemos nenhum gol.)
Em segurança, debaixo de uma árvore, Barata exalava alegria: é de morango. E agora?, perguntou Astronauta. Vamos comer, eu disse, transformando a mão direita numa pequena colher. O caldo avermelhado escorreu entre os dedos. Todos me seguiram. Em pouco tempo, mãos e rostos estavam impregnados de morango. As pontas dos dedos geladas. Cavávamos com ferocidade. Cérbero lambia os beiços. Era muito sorvete. Um pote imenso e, até então, imaculado. Lá em casa, a mãe só faz gelatina, confessou de repente Pateta. Lembrei dos pobres copinhos plásticos coloridos depositados na geladeira pela mãe aos domingos. E continuei a afundar os dedos no sorvete. Ao fim, abandonamos o pote com uma raspa no fundo. As hienas estavam saciadas.
Ao fundo, por detrás da roda-gigante, o sol feito uma hóstia consagrada a iluminar o fim da tarde.