Nemo

Um reencontro familiar desperta memórias soterradas e revela, na noite de uma festa, a improvável vocação de um peixe-palhaço
Ilustração: Carolina Vigna
01/12/2025

Um peixe-palhaço enfrenta inimigos ferozes para resgatar o filho aprisionado em um aquário distante. Esta história nunca me comoveu muito — a figura de um pai destemido a proteger a prole passa muito distante do meu esfarelado imaginário infantil. Minhas memórias são a escuridão de um oceano habitado por monstros e fantasmas. A ferocidade doméstica, de um pai colérico, alcoólatra e violento, sempre sustentou a fragilidade dos nossos dias. Não pensava nisso, tampouco imaginava a travessia de um oceano quando chegamos à festa. Havia certa ansiedade a pulsar sob meus ossos aparentes, meu corpo magrelo e agitado. Reencontraria boa parte da minha família após muitos anos. E, para minha surpresa, um peixe-palhaço iluminaria a noite de uma festa tranquila, leve e agradável.

Quando chegamos, eles já estavam lá. Pontuais, como eu imaginava. Minha filha mais velha, no caminho, construíra uma teoria de que sempre se deve chegar depois do horário marcado. Pareceu-me apenas uma mera idiossincrasia adolescente. Chegamos no horário. Eles já estavam lá. Sentamo-nos na fila de cadeiras diante deles. Entre nós, o corredor por onde passariam os padrinhos e os noivos. Notei a previsível ausência de meu irmão — um homem cuja vida deu um jeito de deixá-lo ainda mais calado e triste. O silêncio e a tristeza são uma espécie de sina que busca, o tempo todo, cravar as garras no nosso lombo. Diante de mim, rostos e corpos conhecidos — apesar do trabalho meticuloso e voraz do tempo. O fim de tarde derrubava uma tênue penumbra sobre os convidados. Logo, a noite nos abraçaria a todos. O ar bucólico daquele pedaço de C. me remetia, como sempre, a uma roça ancestral que insiste em nunca me abandonar.

Um caroço de abacate enroscou-se às paredes da minha garganta; o ar passava com dificuldade. Uma adaga em brasa atravessou meu peito. A tradicional marcha nupcial de Mendelssohn revirou o passado, escavou um túmulo e trouxe de volta minha irmã — morta há mais de vinte anos, com a mesma idade que sua filha, minha sobrinha, percorre o trajeto em direção ao noivo. Desde a morte de minha mãe, eu não a via, minha sobrinha, filha de minha irmã — agora a carregar no rosto o rosto da mãe. Na nossa família, contamos o tempo de maneiras inusitadas. Eu, pelas mortes. Os demais, não faço ideia de qual calendário os guia nesta estranha travessia. A festa de casamento se transformaria, pelo menos para mim, num relicário de memórias e espantos.

Após a longa e repetitiva fala do pastor — entrecortada por frases saturadas de um machismo bíblico —, a festa mostrava-se um espaço de reencontros e inusitados afetos. Ocupamos uma mesa cujas conversas escavariam uma memória relegada a um incômodo silêncio, provocado pela distância que nos marca. Uma prima lembrava do pai, morto ainda antes da velhice; falava da mãe em seu final de vida; lambuzava as palavras de amor ao se referir aos filhos que agora vivem suas vidas, longe do ninho doméstico. Uma mulher cuja nostalgia esculpia cada palavra com muita eficiência. Ao seu lado, uma mulher linda acompanhava tudo com genuíno interesse. Talvez tentasse entender um pouco mais quem eram aquelas pessoas que, de alguma maneira, também fazem parte da sua história ao escolher compartilhar sua vida comigo. A vida é um emaranhado de histórias que, muitas vezes, contam sempre a mesma trama, de maneiras diferentes.

Ele abandonou a mesa ao fundo e sentou-se ao meu lado. Na infância, a morte riscou sua pele delicada, acarinhou seu sono, desenhou um itinerário rumo ao fim. Quase deu certo. Travamos uma cansativa batalha entre médicos, exames, hospitais. Agora, está aqui diante de mim — a risada desprovida da timidez que nos acompanha; o bigode fino a simular um patife de desenho animado ou de filme mexicano mal dublado no início da madrugada. É um sujeito, aparentemente, alegre; um homem alto e forte — quase gordo — a esconder nas dobras do corpo um menino à espera de um carinho. “Não falo muito com o pai. Não nos damos muito bem.” A frase solta em meio à nossa conversa de reminiscências é uma marca familiar. O pai dele, meu irmão, não foi à festa. Meu pai, seu avô, não foi à festa. Ambos padecem da distância dos filhos. Talvez lhes falte a vocação de peixe-palhaço.

Ao nosso lado, meu filho — um jovem esguio e bonito — parece indiferente ao reencontro familiar. Mas sorri com facilidade e se mostra bastante afável com todos ao redor. Ele, há algum tempo, resolveu estudar filosofia num curso online. Contou-me com entusiasmo suas leituras sobre o mito de Sísifo. O absurdismo o seduz, talvez para desespero de sua mãe. Eu apenas o oriento a ler sempre com os olhos atentos à diversidade de ideias. “Ele mudou muito desde a morte da B.”, disse-me meu sobrinho, sobre o silêncio e certa reclusão de seu pai, acentuados por um alcoolismo hereditário — somos uma família de alcoólatras: do meu avô que morreu jovem, caído na rua, à minha férrea abstinência há vinte e cinco anos. B. — uma menina sorridente e simpática —, filha do meu irmão, morreu há mais de dez anos. Algo explodiu no cérebro quando dava à luz um menino, após uma gravidez adolescente. Meu irmão desconhece o mito de Sísifo.

Animados pelo fim do jantar, resolvemos conversar em pé, embalados pela música e pela dinâmica da festa que prometia raiar o dia. Ele, com um copo de cerveja, num perigoso jogo com a maldição familiar; eu, com um copo de água, numa tentativa de obliterar uma longa e vergonhosa história. Ele balança o corpo ao ritmo da música. Eu permaneço estático, imóvel feito um prédio prestes a desabar. Afinal, como já me disseram, não tenho o chip da dança. Sou, no máximo, um espantalho estropiado na tempestade, um polvo a nadar no deserto, um pelicano a despencar com a asa quebrada. Ou seja, um sujeito desajeitado e risível — um impostor perneta no baile de máscaras. “Foi o tio quem me levou pela primeira vez ao cinema. Fomos assistir Nemo”, disse, numa memória deslocada dos demais assuntos. Como se aquela lembrança estivesse aprisionada havia muito tempo e precisasse ganhar o mundo. Talvez nunca tivesse tido a oportunidade de me contar algo de que eu não recordava. Então, eu o levei para assistir, há mais de vinte anos, à aventura do peixe-palhaço em busca do filho aprisionado num aquário, onde fez outros amigos e tramou uma fuga espetacular. Lembro apenas de que os peixes eram muito coloridos e que meus olhos daltônicos não davam conta daquela balbúrdia cromática.

Quando a festa começava a ganhar o furor da juventude ou da alta voltagem etílica, decidimos ir embora. Após muitos anos de ausência, conseguimos recuperar histórias, memórias, afetos. Meu sobrinho, com a animação que parece lhe acompanhar de perto, olhou-me com seriedade e disse que gostaria de ir à minha casa em breve. Garanti que, sim, vamos marcar. Despedimo-nos com um animado aperto de mãos. Dirigi em silêncio na noite nostálgica. Ao chegar à casa dos meus filhos, observei, atento, aquele menino esguio e bonito abrir o portão do prédio. Nunca me imaginei desbravando o oceano, encarando inimigos, em busca do filho perdido. Mas é sempre possível transformar-se em peixe-palhaço, mesmo não sabendo que cores eles têm.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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