Na pança da sucuri

No ônibus que nos leva a C., somos uma selva de estranhos irmanados pela vontade de chegar logo, cada um com a sua pressa, seu cansaço, suas tristezas
Ilustração: Carolina Vigna
01/01/2024

No ônibus, cada um é infeliz à sua maneira. Nunca encontrei leitores de Tolstói a bordo. A paisagem tampouco são as estepes russas de Tchékhov. Apenas carregamos no lombo uma tristeza cansada, espécie de desânimo entranhado nas vísceras, uma indolência severina de tanto sacolejar os corpos nos arroubos desta besta enfurecida: o ônibus. Personagens de uma ópera-bufa-operária, agarramo-nos ao aço sórdido para, em pé, tentar equilibrar uma silhueta em franco desalinho. Lá fora, os bonecos de posto tripudiam sobre nossa infâmia. Os felizardos — e nem por isso felizes —, cujos corpos desmazelados encontram um banco disponível, dormitam muitas vezes ou são conduzidos pelo barqueiro pelos rios de Hades nas telas brilhantes dos celulares. O importante é esquecer que somos todos prisioneiros de uma tristeza coletiva.

Depois de muitos anos — mais de duas décadas —, voltei a encarar as aventuras do transporte coletivo. Já não sou aquele adolescente de cabelos compridos e leituras excitantes em situações extremas de equilíbrio. Nem as mais indecentes curvas eram capazes de deslocar meus olhos das páginas do livro para a paisagem de uma cidade que crescia com fúria e desordem, apesar da propaganda oficial tentar nos convencer do contrário. Como é fácil criar uma ilha da fantasia numa terra de cegos. Agora, sou um homem rumo ao fim da vida, esta fase em que já se viveu mais do que se viverá, quando o tempo ganha outra dimensão e os segundos são ouro de tolo escorregadio pelos dias contados na ilusão da eternidade. O corpo continua magro, os cabelos encurtaram e ganham a brancura célere de uma velhice que se avizinha, a miopia intensificou-se. O daltonismo segue causando embaraços cromáticos. As dores no corpo surgem numa rotina burlesca. Ler em pé no ônibus tornou-se um desafio, quase uma batalha perdida. Alegro-me quando um banco vazio reluz na pança inchada da sucuri que nos carrega rumo à capital. O trajeto é de vinte e cinco quilômetros, numa paisagem monótona feita no interlúdio entre o campo e a cidade.

Somos uma selva de estranhos irmanados pela vontade de chegar logo. Cada um com a sua pressa, seu cansaço, suas tristezas, suas histórias. No divertido zoológico humano, há um pouco de tudo: do estudante de cabelo alaranjado à velhinha de bengala. Mas a maioria é de operários e comerciários que saem da pequena cidade rumo ao trabalho na capital. Em geral, há pouco espaço, mas nossa fauna é desavergonhada. Quando o corpo sucumbe ao cansaço, o chão do ônibus transforma-se em refúgio à penúria. Eu, talvez por certo recato pequeno-burguês, mantenho-me hirto sobre as pernas, mas com o olhar esticado aos esparramados. Eles me comovem. Apesar da melancolia das viagens e de seus viajantes, em geral, divirto-me com certa pilhéria que escorre entre nós. Rimos de nós mesmos, da nossa situação precária, talvez da nossa teimosa resistência diante de um mundo hostil.

Aquelas duas mulheres estão sempre no ônibus. Nossos horários coincidem com alguma frequência. Inclusive um leve meneio de cabeça já se transforma em estranha saudação. Elas inundam a boca de palavrões, são umas pervertidas: filho da puta, desgraçado, merda, bosta, caralho e puta que pariu, para enumerar os mais populares. Às vezes, um dianho escapa entre gargalhadas. As mulheres disfarçam a tristeza com ofensas desferidas para todos os lados. Ninguém escapa da sanha escatológica. O rosário de uma oração devassa alegra o vazio do fim de tarde. Na conversa, insultavam os (ex)maridos (aqueles merdas); os políticos (aqueles filhos da puta); o calor (esta bosta insuportável); o prefeito (aquele imbecil). E riam sem qualquer vergonha do vocabulário arquitetado em golfadas pândegas. São duas personagens nesta plêiade maltrapilha.

O homem lia um clássico de Stendhal, equilibrando-se com o corpo amparado na sanfona que divide o ônibus. Algum gênio da engenharia mecânica um dia inventou de colar dois ônibus para, com isso, levar mais passageiros a cada viagem. O lucro é um grande mecenas da criatividade. Ali, na sanfona, M., minha pequena filha, diverte-se entre o equilíbrio delicado e o tombo inevitável nas curvas e trancos mais acentuados. É o circo particular de M., feito de palhaços e equilibristas. Eu estava sentado. Toquei levemente o braço do homem-leitor, cuja expressão de cansaço naquele início de noite era evidente. O constrangimento parecia forçá-lo a negar a oferta inusitada. Afinal, só entregamos nosso sagrado banco em situações extremas. Ler nunca é uma situação extrema. Mas ele aceitou a possibilidade de viajar sentado. Afinal, o cansaço sempre vence o constrangimento. E recolheu-se nas páginas de Stendhal. Como chegara àquele livro?

A tarde quente nos obriga a abrir todas as janelas do ônibus. Estou de pé quando ouço uma voz meio esganiçada: calor dos diabos, né? Sim, concordo com palavras que mais parecem um silvo. A próxima parada é no terminal, certo?, diz o rapaz, quase um menino, de corpo franzino flutuando numa calça larga, boné de um time norte-americano de basquete na cabeça de cabelos raspados na nuca. Tenho um encontro, diz sem qualquer cerimônia. É mesmo?, dou-lhe terreno para que conte sua aventura amorosa. Conheci uma mulher e agora vou ali encontrar com ela. E como a conheceu? No Facebook, nem sei muito bem como ela é. Solta um riso entre nervoso e aliviado. Mas a gente precisa arriscar, não é mesmo? Ela trabalha perto do terminal. Então, marcamos ali. Olho-o com sincero interesse. Ele prossegue a detalhar seu encontro com a desconhecida, possivelmente confortável no anonimato que nos envolve. E se ela for muito diferente da foto do Face?, pergunta-me. Apenas o encaro, desenho um esgar no canto da boca e levanto os ombros. Uma espécie de resposta sem resposta alguma. Não importa, prossegue. Não importa nada disso. Eu não tinha nada pra fazer e precisava mesmo vir para estes lados visitar minha avó. Então, não tenho nada a perder, diz, como se tentasse convencer a si mesmo.

Quando chegamos ao terminal, ele afasta-se rapidamente entre a pequena multidão. Saem todos em desabalada euforia. Eu permaneço no ônibus que seguirá agora para C., onde moram meus filhos. Pela janela, vejo-o prestes a atravessar a rua. Noto que ele manca um pouco da perna esquerda. O ônibus bufa, está novamente lotado. Encosto-me na janela e abro um livro. Cerca de trinta minutos de leitura na pança da sucuri faminta. Do outro lado, na calçada, uma moça de cabelos azuis acena com alegria. Ele apressa o passo. Ela talvez não seja tão diferente da fotografia.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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