Minha mãe passou parte da infância na escuridão. E o resto da vida também. Em seus ombros massacrava-lhe o peso do castigo.
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Logo pela manhã — a geada branquinha feito lençol sobre a grama — o pequeno exército seguia à roça. Os dedos trincavam no passo quebradiço. Estralavam-se os ossos. Parecia que algo estava fora do lugar. Tudo naquele lugar onde os bois ruminavam a manhã de bafos grandiosos deslocava-se para a escuridão. Ao longe, a plantação espraiava-se à espera da enxada e de pequenas mãos a arrancar o mato que lhe invadia as vísceras.
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Esganifado é alguém que come muito, atabalhoadamente, que invade o prato com voracidade canina. Enfim, um morto de fome. A definição não está no dicionário. Não a encontro em lugar nenhum. Minha mãe ensinou-me um neologismo. Ele é minha herança. Ela não sabe o que é neologismo.
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Ao chegar à roça, as crianças dividiam as tarefas. Capinar o chão que um dia lhes expulsaria sem qualquer pena. O feijão tinha de ser arrancado. As melancias deveriam respirar por entre o arrozal. O mato precisava ser enxotado para outros grotões. Ali perto, com seus olhos em brasa, a avó apenas observava a movimentação dos netos. Ao primeiro sinal de rebeldia, o castigo. Os pés infantis queriam trilhar a grama em desabalada corrida. Queriam voar. Mergulhar no rio que lá embaixo servia de refúgio aos bois mais vagarosos. Os irmãos — um batalhão naquela família infinita de italianos — odiavam a vida em torno do barril que tanto os apavorava.
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Minha filha ensina-me que a ordem das sílabas não faz nenhum sentido. O “címpice” casou com a princesa e viveram felizes para sempre. Conta que dentro da chuva mora o trovão. Ela tem medo do trovão. Portanto, não gosta de chuva. Ensina-me lógica. Uma lógica que há muito me abandonou e agora retorna com força extrema. Brinca de filha de um galo no desenho. Afirma solene: “Sou a filha do galo, sou uma gala”. As palavras lhe envolvem num jogo lúdico de descobertas entre a família e a escolinha. Ela ainda não me ensinou nenhum neologismo. Ela também não sabe o que é neologismo.
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Ao primeiro sinal de rebeldia, a avó agarrava um dos netos e o enfiava debaixo do barril. A escuridão envolvia a criança durante um bom tempo. Quase uma eternidade. Adiante, os demais seguiam na lida. A velha sentava-se majestosa sobre o barril. Se Hitler tivesse um barril… Se minha bisavó tivesse uma câmara de gás… Hitler e minha bisavó devem conversar com freqüência no inferno. Na escuridão, longe da escola, as crianças teimavam em desobedecer à avó. Na infância, hoje apenas uma nódoa translúcida, poucos dias foram desperdiçados na sala de aula nas lonjuras daquele fim de mundo. A terra pronta a reproduzir era mais importante. Não dá para cavar a terra com um lápis. “Ah, se eu tivesse estudado”, dizia-me com freqüência minha mãe. Teria bailado uma valsa num salão em Praga? Teria vislumbrado o vinho a deslizar pela taça no restaurante da Toscana? Teria pedido para a aeromoça mais um suco de laranja? Teria me ensinado a tabuada do sete, a mais difícil? Teria lido Crime e castigo? Joyce seria seu amigo? Teria me ensinado outros neologismos? Teria comprado um barril? Talvez.
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Penteou-me com esmero. Os cabelos para o lado, como eu gostava. Cabelo bem curtinho, cortado pelo pai numa cadeira de palha atrás de casa. Os cabelos fundiam-se com a terra. Alisou-me a face com suas mãos ásperas. A terra (um útero seco) e a escuridão longínquas nos vomitaram havia algum tempo. Agora, habitávamos C. — esta cidade-cemitério que nos embala o sono e nos escolhe aleatoriamente feito bois vagarosos. “Chame a professora de tia”, disse-me com um carinho que até então eu desconhecia. Ela preparava sua vingança, bem longe do barril. Meu irmão, ao meu lado. (Depois, perdemo-nos pelo caminho para nunca mais nos acharmos.) Minha mãe colocou com cuidado um lápis e um caderno num pacote vazio de arroz de cinco quilos. Não lembro a marca. Sacos de arroz são bem resistentes. Minha primeira mochila escolar.
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O caminho até a escola era de pedras e grama. Íamos em grupo. Todos próximos para não se perder na imensidão de C. Antes da escola, uma pequena chácara. Tínhamos de atravessar o gramado em fila por um carreiro até chegar à última descida que daria na porta da Angelo Trevisan. No gramado, vacas e ovelhas. Mesmo em C., o passado teimava em não nos abandonar. No inverno a geada construía um fino lençol sobre a grama. Nossos pés estavam protegidos. Sempre que me lembro deste trajeto, tenho a impressão de que uma velha de olhos em brasa sentada num barril nos observava. Estava morta.
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Paro o carro. À minha frente, de um veículo importado descem duas crianças. A jovem mãe tem o corpo bonito. Noto-lhe orgulho de carregar as crias rumo ao portão. Uma barulhada de crianças e mães inunda com certa alegria exagerada a estreita rua. Minha filha chega para o primeiro dia de aula. Em casa, o uniforme azul e amarelo deu-lhe graça. Nos cabelos longos, uma chuva de pequenos enfeites. A mochila azul não lhe escapa das costas. Caberá um pacote de arroz nesta mochila? Fotos em frente à escola. Um pequeno espetáculo para afastar a escuridão. No jardim, a grama é bem cuidada, pequenos bichinhos em gesso despontam. Depois da aula, antes de entrar no carro e pedir para que eu coloque um CD de músicas infantis, minha filha sempre corre nesta grama. Ali, não há nenhum barril.
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Quando cheguei em casa e dei a notícia de que estava formado, terminara o curso de jornalismo, minha mãe disse-me: “Agora, você pode vender todos estes livros”. Sua vingança estava completa. Os livros precisavam dar espaço novamente aos pratos, toalhas e outros objetos espremidos nos cantos pelas páginas que se multiplicavam pela casa. Não vendi os livros. Estão aqui comigo. Minha filha não os destrói. Penso em comprar um barril e enchê-lo até a boca com alguns exemplares. Quando transbordar, nossa vingança estará completa.