Meu pai me ensinou a correr. Atrás de casa. Pelas frestas das tábuas mal desenhadas, nossa primeira morada em C., olhos curiosos assistiam ao nosso desajeitado balé. Meu irmão, minha irmã. Torciam por mim ou por ele? Nunca perguntei. Eu não sabia por que ele me perseguia. Precisava fugir, aumentar a distância entre minhas pernas curtas, magras e ingênuas, e as dele: longas, fortes e enfurecidas. Ainda não havia lido Cortázar. Não desconfiava de que alguém escreveria instruções para subir uma escada. E para fugir de um pai em um milharal? Eu tinha de cortar caminho por entre os ralos pés de milho, deslocados do nosso mundo rural para C. Mantínhamos a ilusão de que não éramos intrusos naquele universo de prédios e solidão. No chiqueiro, o único porco esperava a morte. Nós também, mas ainda não sabíamos. O importante era movimentar as pernas, uma depois da outra, com rapidez, força, agilidade. Duplicar a distância entre nossos corpos. Ironia é que meu pai nunca me alcançou. Nunca me alcançaria pelo resto da vida. A distância aumenta, aumenta, sem cessar, no ritmo de nossos passos, rumo a um milharal, um porco e um verso.
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Deixo a Espanha por uns dias. Desembarco em Tanger, onde nas ruas me oferecem haxixe e maconha. Agradeço a oferta, recusando-a com um leve aceno. Um guarda ignora meu cambaleante espanhol. Exige falar em francês. Ignoro-o. Preciso chegar a Marrakesh. Lá, encontrarei o irlandês Seamus Heaney, prêmio Nobel de Literatura em 1995. Marcamos na praça central, sob a fumaça das comidas que invade cada pedaço dos nossos corpos. Elias Canetti já havia passado por ali muitos anos antes. Heaney me espera após minha insistência em conhecê-lo. Foram meses de intensa correspondência, desde setembro de 1998, logo após o lançamento de Poemas, seu único livro traduzido no Brasil. Nele, encontrei o poema que, mesmo antes de ser escrito, nunca mais me deixaria em paz: Seguidor.
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Meu pai lavrava com charrua e cavalo.
Os ombros redondos como velas pandos
Entre os varais e o sulco. Bastava um estalo
De língua e os cavalos iam forcejando.
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O Passeio Público abrigava macacos, peixes, putas e fotógrafos. Meu pai leva-me pela mão. Atravessamos em silêncio as ruas de C. Agora, estamos lado a lado; ele não me persegue. Talvez, tenha desistido. Sabe que nunca me alcançará. Preciso de uma fotografia para a carteira de identidade. Próximos ao rio de carpas, pipocas boiando e cheiro de fezes, um homem e seu estúdio. De uma pobreza que me causa certa pena de todos nós: meu pai coloca-me paletó e gravata, sento-me e espero que aquilo termine logo. Sempre que olho esta foto que preservo feito um amuleto, tenho certeza de que outra pessoa me observa. Não sou eu, nenhum resquício daquela tarde entre os macacos me restou. Meu olhar é para cima, como se não quisesse encarar o mundo a minha frente. Ao sair, percebo que há um cavalinho de madeira à espera das crianças para uma fotografia.
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Um conhecedor. Colocava a travessa
E ajustava a relha de aço agudo e vivo.
Rolavam sem quebrar os torrões de terra.
Na borda do campo, a um tirão imprevisto
De rédeas, a junta suarenta virava
E voltava para o terreno. Ele
Estreitava um olho a fitar a lavra,
Traçando o sulco exatamente.
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Escrevo, enquanto espero Seamus Heaney: “Matar um porco é fácil. Levanta-se a perna do animal e mete-se a faca sem nenhuma dó. O berro tenta dizer ao mundo que a morte o encontrou. O silêncio da manhã atrás de casa transforma-se em urros que rapidamente colam-se em todas as paredes da memória. O desespero do porco com a faca cravada na carne branca nunca nos abandona. Impossível”. Quanto tempo depois morreu aquele porco que assistiu de seu chiqueiro urbano àquela perseguição das pernas longas de meu pai ao meu corpo esquálido?
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Tento concentrar-me nas teclas da máquina de escrever: asdfg…çlkjh… asdfg…çlkjh…asdfg…çlkjh…asdfg…çlkjh…, enquanto os seios de Elis teimam em flutuar pela sala de datilografia do Senac. Elis foi meu primeiro grande amor não correspondido. Com o tempo, acostumar-me-ia às desilusões. Meu pai levou-me à secretaria para a matrícula; caminhamos longa distância lado a lado desde o ponto de ônibus até o curso que pretendia mudar minha vida: datilografia. Na carteirinha, a mesma foto tirada no Passeio Público. Não queria cavar o futuro numa terra que nos expulsara: asdfg…çlkjh…asdfg…çlkjh e os seios de Elis. Nunca contei sobre ela a meu pai. Nunca contei nada a ele. Somos dois estranhos a esbarrar em C.
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Eu tropeçava nas pegadas das botas,
Caía às vezes na céspede luzida;
Ás vezes ele levava-me nas costas
Descendo e subindo ao ritmo da lida.
Eu queria crescer e lavrar,
Fechar um olho, firmar os braços.
Tudo o que fiz foi seguir sem parar
Pela fazenda à sombra de seus passos.
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É madrugada quando abro um bonito caderno deixado sobre a estante. Ali, parentes e amigos deixam mensagens a meu filho que nasceu há poucos dias. São todas muito parecidas: amor, felicidades, alegrias e outros lugares-comuns que inventamos para todos nós preenchem as páginas. Encontro as letras de meu pai. Uma mensagem curta, em que a palavra felicidade se destaca. Meu pai escreve meu nome com J. Meu pai não sabe datilografia.
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Pegou-me no colo quase nunca e fincou-me seu olhar de lonjura. Não agüentei muito tal olhar, desviei-me e tive a certeza de que nunca o amaria. Enganei-me — amo-o na sua ausência permanente, mesmo ao acordar e desviar as cadeiras vazias; é apenas um fantasma a rondar nossa coleção de silêncios, seus passos não rangem o chão de tábuas, sua sombra não suja as paredes, o sol não o incomoda, a poeira não se apega a ele, os uivos da rua morrem nele, como uma esponja, absorve tudo, prende-se em si, nada escapa, e segue para o calor da varanda, de onde já não se vê mais o milharal, o chiqueiro e o porco.
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Um estorvo, falante, falseando,
Caindo sempre. Mas agora
É meu pai que vive tropeçando
Atrás de mim, e não vai embora.
*Os versos de Seguidor, de Seamus Heaney, foram traduzidos por José Antonio Arantes (Poemas, Companhia das Letras, 1998).