Eles viajaram quase setecentos quilômetros. Deixaram a roça no fim da tarde, cortaram a rodovia na madrugada. Estão aqui ao meu lado. No caixão, à nossa frente, a irmã mais velha deles — minha mãe. Vieram para a despedida. De tempos em tempos a morte nos aproxima. É uma pervertida. São quatro homens altos, magros e silenciosos. Tudo neles é mansidão, uma lerdeza medida, como se evitassem a todo custo ofender o mundo. O vinco do rosto comprova o sangue que nos une. Mantenho-me ao lado de um dos tios. Tem a barba bem escanhoada. Longa e grisalha. No rosto quadrado os olhos são pequenos, afundados na face ossuda. É o mesmo homem que me levava para arar a terra. Lascar pequenas melancias na pedra. Sou o mesmo menino a cuspir sementes pretas e lisas numa lavoura arcaica.
O arado sulcava a terra. Preparava-a para receber a próxima colheita. Eu acompanhava admirado a habilidade daquele homem de nome estranho ao conduzir a parelha de bois e a lâmina afiada a sangrar o solo. Todo boi tinha um nome. Nomes que lembram anacrônicas duplas sertanejas. Mineiro e Malhado era a minha parelha preferida. Pela roça, ecoava o grito do tio a ordenar os animais. Eles cabeceavam, mas obedeciam. A baba escorria pastosa. A raiva e o cansaço represados na boca. Impressionava-me a retidão da linha traçada no solo irregular. Eu ia atrás tropeçando nos torrões e valas pelo caminho. No descanso da lida, sentávamos num toco calcinado de árvore. Rachávamos uma melancia pequena — uma bolota esverdeada — numa pedra. Ficávamos ali em silêncio cuspindo sementes pretas na terra recém-profanada. Os bois à sombra.
O padre reza pela alma da mãe. Suplica para que Deus a receba em seus braços. O mísero amparo que lhe restou entre as flores de plástico. Estou em meio aos tios. Quatro homens barbudos. Ele está à minha direita. Veste uma antiquada jaqueta jeans. Calça de brim. E sandálias de couro. Os dedos dos pés são grossos. A pele áspera e resistente. É um animal preparado para as piores batalhas. Às vezes, parece me encarar de canto com seus olhos de boi assustado. Saberia que sempre fora o tio preferido?
Da roça, ao fim de um dia de muito trabalho, íamos nadar no rio. Depois, ao futebol no campo de uma trave só, enquanto a noite não nos engolia por completo. Ele, com a camisa surrada do Grêmio, imaginando defesas memoráveis de um Mazzaropi em fim de carreira. Passei praticamente todas as férias escolares na roça, na casa da avó materna. A infância ainda não conseguiu atravessar a pinguela sobre o rio barrento. Estou do outro lado da margem. E não sei nadar.
Rezamos o Pai-nosso. As mãos do tio espalmadas para o alto. Reza de olhos fechados. Acredita que ajudará a carregar a irmã até o Céu. Também rezo. Mas sem a mesma devoção, de olhos abertos, esquadrinhando o que me resta deste lado do mundo. Sua boca movimenta-se sincronizada por entre a barba espessa. Uma corruíra arisca escondida na floresta de angicos. Sinto seu cheiro de homem ao relento numa roça eterna. Tentou a cidade grande. C. era grande demais para a canga no lombo dos bois. Logo, voltou para os grotões de Santa Catarina — para onde há anos ensaio um retorno que nunca se completa.
O padre sai após enviar mais uma alma ao Paraíso. Fechamos o caixão. Empurramos a mãe à escuridão da tumba. O sol próximo ao meio-dia sapeca os túmulos de concreto. Aos poucos, os parentes e vizinhos deixam o cemitério. Os tios estão reunidos à sombra. Caminho lentamente. Meu corpo é ainda mais lerdo quando a vida é só incerteza. Os tios não conversam. Preservam o silêncio. Estão ali apenas à espera do tempo de retornar — duas parelhas de bois cabeceando na lavoura de concreto. Aproximo-me do tio. Ensaiamos um abraço, que no meio do caminho se transforma num desajeitado aperto de mãos. Deixo-o ali sob a árvore de folhas ralas. Entro no carro e vou embora.