Flores

A mãe não imaginava que seu leito de morte seria preenchido por histórias inventadas — no lugar do cadáver, livros; no lugar do câncer, ficções
Ilustração: FP Rodrigues
01/11/2023

O ímpeto dos olhos tropeça na incerteza da boca. A cada trecho vencido, olha-me com a expectativa da aprovação, do amor em forma de silêncio. Estamos, há algum tempo, construindo um mundo lúdico e embaralhado de palavras, um torvelinho: não saem mais de meus lábios em direção a seus ouvidos. O caminho agora é ao contrário: tremulam na delicadeza sapeca de M. em busca do meu orgulho de pai. Não é muito fácil, a fluidez empaca no meio do caminho, o sentido perde-se no vagar de sílabas ásperas, no rebuliço das entrelinhas. É como o gato que se recusa a atravessar a ponte e cair nos braços do diabo do outro lado. M. não é um gato assustado; eu não sou o dissimulado diabo a esperá-la. Mas a dúvida nos guia nesta descoberta, nesta viagem em que algo muito importante nos aguarda na travessia.

Na infância, não tive livros. A vida não nos dava tréguas para estas inutilidades. O jeito era cavoucar a terra e esperar que a escola desse conta de nos guiar por um descampado praticamente ágrafo, longe das bondades civilizatórias, das madeleines com chá no fim da tarde. A ideia de uma biblioteca era apenas algo como um Xisto perdido no espaço, vagando entre estrelas inexistentes, planetas inalcançáveis e inóspitos, a boiar na escuridão do universo ao redor da nossa casa — uma tapera de madeira fincada numa cidade de concreto. Para que palavras se tínhamos os dedos rígidos e ríspidos para o trabalho braçal e os olhos secos e turvos de nossos pais para o emaranhado de letras no papel? Do outro lado, nem o diabo nos esperava.

Após a morte da mãe — uma morte lenta e agônica durante alguns anos —, derrubei paredes, arrastei móveis, esvaziei gavetas: era necessário injetar vida ao antigo cativeiro do câncer. As paredes da casa esconderam-se atrás de milhares de livros — uma couraça de papel e aventuras. O colorido das capas e lombadas não ofuscam minha ignorância cromática de daltônico. São como guardiães de uma história cujo fim é óbvio, mas, ao menos para o personagem principal, completamente extraordinária. Xisto nos confins do espaço combate alienígenas com a lança certeira de um Quixote vesgo no lombo de uma hiena.

Onde hoje estão japoneses, ingleses, noruegueses, moçambicanos, turcos, argentinos, espanhóis e o resto do mundo todo, a mãe estirou-se para a morte, sem ao menos ter ideia de que seu túmulo seria preenchido por estas histórias inventadas. No lugar do cadáver, livros. Milhares deles. No lugar do câncer, ficções. A morte sempre nos vence no final, mas até a derrota inevitável, brincamos de esconde-esconde disfarçados de uma sorrateira elipse.

M. orgulha-se, na ingenuidade de sua animada infância, de viver parte dos dias numa casa apinhada de livros. Conta às amigas, aquelas pessoas pequenas de olhos esbugalhados pela curiosidade da vida: “Na casa do meu pai, só tem livro”. Ela não menciona os eternos pés de alface na geladeira, talvez para evitar risos sardônicos de sua trupe liliputiana. É toda uma grande vingança de seu pai: da aridez de uma infância para a bonança de outra inventada. Uma ponte que liga o terreiro pedregoso onde Baleia agoniza aos mares que o capitão Ahab navega ensandecido à caça de outra baleia.

Quando a morte se sentou definitivamente ao seu lado no sofá desprezível, a mãe agarrou-se com mais ímpeto às barbas de Deus. Sempre fora uma fervorosa católica — daquelas de abraçar a capelinha e percorrer a vizinhança em intermináveis novenas, de se confessar e comungar todos os domingos em sonolentas missas na igreja de madeira. Mas no final da vida, quando o corpo já era apenas uma fábrica a expelir os próprios dejetos, buscou um contato mais íntimo, mais próximo aos milagres divinos: a única possibilidade, já que o corpo não conseguia mover-se até a igreja, era a Bíblia, deixada sempre ao lado da tevê.

Quase analfabeta — os míseros dias numa escola nos grotões da roça lhe injetaram apenas um ciciar de sílabas mancas nos olhos e ouvidos —, tateava o frágil papel em busca de algo para seus derradeiros dias. Talvez uma tentativa de assegurar definitivamente a sua entrada no Céu. Com a ponta dos dedos, a tatear frases, contava letras, juntava sílabas, formava palavras. Os lábios tremelicavam numa conversa íntima com Deus. Depois, veio apenas o silêncio. Não tenho certeza de que suas palavras foram ouvidas.

Às vezes, brincamos de livraria. Um velho teclado é o espaço destinado ao caixa. Atrás dele, M. — a dona da livraria —, é uma alegre ilha cercada de livros por todos os lados sobre o sofá. Sim, a livraria fica num sofá. A mãe ficava num sofá. A vida dá voltas para nos entregar outros significados no mesmo lugar. Eu sou o cliente, o único e mais animado cliente da pequena livraria. Chego de carro, estaciono no meio da sala e vou às compras. Por indicação de M., compro vários livros para meus filhos. Pago tudo com moedas. Na pequena livraria, os livros têm preços muito acessíveis. Saio carregado. Em seguida, M. fecha a livraria e esparrama-se no meio do sofá. Na tevê, um desenho qualquer a prepara para a empreitada do sono.

Um dia, a mãe perguntou: “Para que tanto livro, meu filho?”. Nunca lhe entreguei uma resposta convincente. No máximo, um débil e covarde “porque gosto de ler”. A resposta não é simples. Está ao alcance da ponta dos dedos, mas se afasta em direção ao olhar curioso de M. e adormece no travesseiro com cheiro de infância.

Sempre no mesmo horário, subimos a escada em caracol em direção ao quarto. A hora de dormir é também o momento de resgatar uma vida toda. No quarto, centenas de livros emolduram as paredes e sufocam os brinquedos a um mísero canto. Antes, eu separava vários livros e os lia com o entusiasmo do faminto diante do banquete. Com o tempo, M. começou a escolher as próprias histórias. Agora, já sabe o que gostaria de ler (ou tentar).

O primeiro livro lido por M. tem o singelo título de Flor. Neste exato momento, neste agora em que dedilho estas palavras, quando a chuva intermitente baila sobre o telhado de vidro, dou-me conta da ironia da vida. Quando chegamos a C., uma cidade grande e assustadora, vindos de uma roça inóspita e miserável, fomos morar de favor numa chácara de flores. Trabalhávamos todos — adultos e crianças — entre azaleias, samambaias, gerânios, crisântemos e uma miríade de flores. A mãe sempre a puxar uma longa mangueira para regar as samambaias. A mangueira, às vezes, fazia uma espécie de S entre as estufas. A caligrafia da mãe nunca teve a elegância desejada.

M. segura Flor com as duas mãos. Acaricia as letras em busca de um sentido. Eu apenas a observo. Quando empaca nas sílabas menos afáveis, eu a ajudo. Vai em frente, titubeando, insegura, mas feliz. Na metade do livro, cansada pelo imenso esforço de compreender aquele mundo, estende-me o livro: “Termine de ler, papai”. Ao seu lado, leio lentamente. Antes do final, M. adormece. Fecho o livro, apago a luz e saio do quarto.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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