Os dentes contam a nossa história. Cheguei apreensivo ao consultório — uma porta um tanto acanhada num imenso conjunto comercial — na rua mais movimentada de C. Pela canaleta, ônibus vermelhos, com uma bizarra sanfona na pança, feito desajeitadas víboras a rastejar no asfalto. O dentista lavou minuciosamente as mãos robustas, com lerdeza, paciência e método. Emborcou dois longos copos d’água. “É preciso beber água o dia todo”, disse como se recitasse a fórmula da vida eterna. Naquela época, eu já duvidava muito da eternidade.
Pediu-me para sentar na longa cadeira — espécie de moderna máquina de tortura. Acomodou o babador de papel em torno de meu pescoço. Me transformaria num cão raivoso a uivar na tempestade? Abra a boca. O corpo teso, a luz branca a iluminar uma assepsia inimaginável. Sentia o medo percorrer braços e pernas magras. E irromper em forma de suor entre os pelos a indicar que o corpo se preparava para a lascívia adulta. Abri a boca ao máximo a escancarar uma vergonha desconhecida, oculta na geografia familiar. Temos alguns problemas. A voz do dentista, apesar de suave e firme, soava como um pedido de socorro de um prisioneiro nas encostas do fim do mundo. Um som antigo, gutural, quase animalesco. Há quanto tempo você não consulta um dentista? Impossível articular a palavra nunca quando a boca é apenas um experimento nas mãos de um agrimensor cego. Balancei a cabeça. Talvez parecesse um espantalho cansado, sem pássaros para afugentar.
Aos 15 anos — um adolescente magro, tímido, desajeitado e daltônico — pela primeira vez consultava um dentista. Os dentes nunca tiveram muita importância lá em casa. O pai tinha apenas alguns. A mãe, nenhum. Durante um tempo, eram apenas tocos negros pregados na gengiva. Lembro da boca da mãe como uma cerca irregular incendiada por um vândalo. Depois, aos poucos, arrancou tudo para prender a incômoda dentadura. A miséria passa pela boca — destituída de palavras capazes de relegar alguma herança. A mudez é, quase sempre, a sina do derrotado. A boca murcha da mãe é o símbolo da nossa derrota. No início, a relação com a dentadura não foi das melhores. Era comum despencar da boca e afundar na poeira. Uma rebelde a batalhar com uma desesperada. Por um tempo, a mãe transformou-se numa estropiada bailarina: a mão direita corria em direção ao chão em busca dos falsos dentes; a esquerda tapava a boca — improvisada cortina para evitar espectadores naquele teatro de humor doentio. Mas dentes não são importantes quando a comida é pouca e rala. Logo o balé da mãe perdeu completamente o sentido.
Havia certa ansiedade fincada em todos nós. Eu devido ao reencontro com uma família que o tempo arrastara para terras distantes. Eles, meus filhos, pela possibilidade de reconhecerem os caminhos que os levaram até ali. Os 90 anos da bisavó — minha avó materna — era o pretexto para o estranho e barulhento encontro. Aninhados a minha volta, pareciam pequenos animais assustados. Aos poucos, tios, primos e um exército de filhos, netos, sobrinhos, casais de namorados surgiram na oficina, que se transformara em improvisado banquete. A pedra brita levantava uma tênue poeira; mesas e cadeiras plásticas acomodavam distintos ruídos; a churrasqueira feita às pressas de tijolos sujos equilibrava nacos disformes de carne. Tudo pronto para o reencontro de uma família cujos traços nem mesmo o suicídio, a pobreza e as dificuldades conseguiram destruir completamente.
A algaravia denunciava uma ânsia desconhecida. Os tios e tias, cujas idades eram impossíveis definir, falavam de um tempo há muito esquecido, soterrado, mas que ressurgia com brutal e ancestral força. Todos vieram da roça, de uma vida de pouca escola e muito trabalho. O passado teima em nos devolver a nós mesmos. As histórias se entrelaçavam numa dança de gente simples, baile que logo arrefeceria as forças e cairia em longo silêncio até o próximo encontro, que talvez nunca mais chegue. Minha mãe e seu pai, meu avô, as únicas ausências. Ela, o câncer devorou. Ele, a corda sufocou no longo abismo de uma árvore. Ambos, assuntos quase proibidos. Câncer e suicídio podem render conversas pouco agradáveis.
Meus filhos observavam tudo na tímida quietude. As poucas palavras saíam para amenizar a curiosidade. Estudo pela manhã. Eu jogo futebol. Sim, o papai vive lendo e escrevendo. Moramos aqui perto. É um prédio. Já viajei de avião. Estudo inglês. Faço balé e jazz. Não, vamos de carro pra escola. Minha avó viajou para a Europa. O papai sempre conta histórias da infância dele. É, ele morou na Espanha. Minha mãe é jornalista. Adoro costela. Frases simples e curtas iam marcando uma distância que nos unia a todos. Na vagareza do dia, o sol pende para os lados, desenha uma oblíqua sombra no muro. A fumaça entre os tijolos, apenas um fiapo. Os pratos se amontoam sobre as mesas quase brancas. O vozerio transforma-se em frases esparsas. Os assuntos perdem o vigor. Os homens bebem cerveja. As mulheres recolhem a louça. Todos parecem saciados de uma fome eterna.
Abraço minha avó e me despeço. A mulher gorda e velha me olha como se fosse a última vez. Há uma espécie de gratidão em seu olhar. Meus filhos dão um adeus tímido. A sombra agora envolve todo o muro.
Voltei muitas vezes ao dentista. Sempre o mesmo ritual: dois longos copos d’água, o babador, a assepsia das mãos. Era um abnegado. Levava muito a sério a missão de salvar três dentes ao fundo. A herança da mãe corria riscos. Sem saber, o dentista me livrava de uma sina, reescrevia minha história com dedos envoltos em luvas de borracha. As agulhas perfuraram fundo, a brasa da civilização a arder na minha boca. Depois de muito escavar, o gosto pútrido na língua, a batalha perdida. Dois dentes a menos compõem o mapa que leva do suicídio do avô ao enterro da mãe. Meus dentes ajudam a entender o que deixei de ser.
Ao levar minha filha todos os meses para ajustar o aparelho que desenha um sorriso perfeito, a dentista garante: você também precisa resolver esta mordida. Abro a boca feito um animal adestrado. Sim, vamos melhorar as coisas. E, depois, podemos implantar estes dois dentes aqui no fundo. A dentista é bonita e simpática. Mas quem lhe disse que quero deixar para trás a minha história? Há cadáveres que têm todos os dentes. De que servem os dentes ao sorrir na escuridão? Não lembro se tiraram a dentadura da mãe para enterrá-la. Há cadáveres que não têm nenhum dente. Talvez ter dois dentes a menos seja apenas uma equação matemática para resolver na inexistente eternidade. Quem sabe a regra de três sirva para alguma coisa.
Levo meu filho à escolinha de futebol. Sonha em ser jogador. Quieto, ouve jazz ao meu lado no carro. Desde o ruidoso churrasco, nenhum comentário sobre o primeiro encontro com a bisavó. Provavelmente, o último. Um silêncio incômodo o acompanha. Algo está fora do lugar. Gostou de conhecer minha avó?, a pergunta ressoa muda. Estamos perto de casa. Gostei. A resposta de palavra solitária não escondia apenas timidez. Gostou? É, gostei. Só isso? Mas notei uma coisa. Que coisa, meu filho? Muitas pessoas não tinham dentes. Como assim? É, faltavam vários dentes quando falavam.
Há pouco tempo, minha filha tirou o aparelho e reluz um vasto e belo sorriso. Meu filho vai ao dentista com regularidade e também precisará corrigir a mordida. Eu sigo com dois dentes a menos. Minha avó quebrou a perna e voltou para a roça de onde saíra após o suicídio do marido. Talvez, nunca mais a veja. Não sei quantos dentes habitam a boca de minha avó. Possivelmente, nenhum.