Já odiei aquelas mãos. As palmadas volumosas nas nádegas. Odiei com todas as forças aqueles dedos a puxar-me pelas orelhas em direção ao banho após mais uma desobediência do dia. Mas nada de ódio existia. Desejava apenas o afago no lugar da palmada. Sempre desconfiei de que, às vezes, alguns afagos nos doem no corpo. Agora, eu as sustento — as mesmas mãos. Tento retê-las, mas elas escorregam e adormecem na coberta. Não há força ou vitalidade. São as mesmas mãos: os dedos longos, bem desenhados, nodosos nas juntas, e a palma áspera. Sinto o calor que se expande, percorre várias décadas e apenas se insinua. Passo as minhas mãos sobre as costas daquelas mãos. No silêncio que nos caracteriza, nada dizemos. Apenas estamos tentando entender o que aconteceu. Da boca, nada ganha forma. Um sussurro me diz que as coisas não estão bem. Nada está muito bem.
Enquanto a acaricio, percorro o resto do corpo com os olhos. Não é um passeio fácil, não é um passeio pelo parque de mãos dadas com os filhos. Alguns traços ainda permanecem, teimosos, valentes, contra algo estranho que lhe entrou pelo corpo. É a mesma mulher. Ou parece ser a mesma mulher. Ela está ali. Mas, ao mesmo tempo, está ausente. Digo-lhe que está tudo bem. Sabemos que não está tudo bem. A frase fica ali, perdida entre nós, dando voltas pelos móveis, à espera de que alguém lhe dê algum sentido. O sentido de tudo isso nunca saberemos. Quando ela se senta, envolvo-lhe num desajeitado abraço. Sinto os ossos a cutucar meus dedos. Então, é para isso que estamos aqui? Apenas ensaio a pergunta para, em seguida, tragá-la num gole com gosto de fel.
Abro a Bíblia numa página qualquer. Busco um trecho que lhe diga algo. Leio devagar, desrespeitando vírgulas, forjando a pontuação adequada aos seus ouvidos. Ela abre a boca em sinal de aprovação. Mas nada me diz. Busco a fé aprendida nas aulas de catequese. Resgato a fotografia da primeira comunhão: estamos todos ali, a família toda, sob o pretexto divino. Ao final da leitura, deixo a Bíblia ao lado da televisão. A casa toda está desligada. A manhã se infiltra pela janela. Meço-lhe novamente a geografia do rosto. Os sulcos são quase escandalosos. É um território que desconheço. Afago-lhe os cabelos. Deslizo a mão pela face. Acolho-a inteira em minha incapacidade. E envolvo suas mãos com a delicadeza necessária. Acaricio como se antecipasse a impossibilidade do toque. Deixo minhas mãos sobre as dela. Não falamos nada. Ficamos ali olhando para lugar nenhum. Não somos um casal de namorados no parque assistindo ao pôr do sol. Somos apenas uma tentativa.
Quando ela adormece, saio lentamente. Abro a porta e ganho a rua. Em silêncio.
NOTA
Crônica publicada originalmente no site Vida Breve, em 30 de maio de 2011.