Eu não lhe disse “venha”. Eu não lhe disse nada. Nós temíamos a distância. Enfrentávamos nossos medos, fragilidades e inseguranças. Mas desejávamos o deslocar-se. Éramos dois extremos da mesma história. Uma ponte — delicada e curta — nos separava. Eu o atraía com o olhar; ele me fisgava com um sorriso. Apoiava-se diante do desafio. As delicadas garras davam-lhe a sustentação necessária. Não se mexia. Parecia pedir minha autorização. Estático, eu apenas o observava. Silêncio e expectativa. Um momento que nos pertencia. Congelamos o relógio na parede, desligamos os ruídos da engrenagem, reduzimos a claridade do dia. A casa toda pulsava em nós. A epiderme do piso não ousava movimentar-se. A respiração represada nas frestas, o coração a pulsar em compasso com a espera. O sol estacionado à janela aguardava pacientemente. Lá fora, o mundo seguia seu ritmo inquieto, seu incessante ruminar em torno de si mesmo. Aqui, a poucos metros dele, imagino que em breve toda esta pressa o envolverá, o tragará feito uma turbina desvairada, o esmagará. Terá de ser um forte. Posso ensinar-lhe pouco. A tomar café sem açúcar, a colar figurinha no álbum, a desenhar uma ilha e um coqueiro, a fazer três embaixadinhas com a bola de plástico, a virar as páginas do livro sem deformá-las, a fazer uma reta de cinco centímetros, a escrever o nome em letra trêmula, a rir de si mesmo, entre outras coisas imprescindíveis. Mas não já. Decido apenas observar. Ele toma coragem, avalia o trajeto e desprende-se das bordas do sofá.
Agora, digo-lhe “venha”. A coragem transforma-se em movimento. Eu o movimento? Ou ele me movimenta? O que nos une em tão poucos centímetros? A casa, ainda calada, apenas observa. A mesa, estática, olha-nos. As cadeiras mantêm-se silenciosas; não arrastam os pés no piso de porcelana. Apagadas, as lâmpadas aguardam o desfecho. O pequeno universo que nos envolve não nos aniquila. Ao contrário, é um útero aquecido e macio a nos proteger. Não há pressa, angústia ou desespero. Apenas um insinuar, um desafio, uma batalha a ser vencida, um obstáculo a ser transposto. Mas ele ainda não sabe como. Ou se sabe, algo o prende ao encosto feito um imenso imã a mastigar migalhas de ferro. Ao desprender-se parcialmente, titubeia. Um pequeno arbusto a balançar ao vento. O desequilíbrio é inevitável. Aferra-se novamente ao sofá. Dali o gigantesco mundo o admira. Ele também é imenso, mas ainda não sabe disso. Deseja apenas navegar os centímetros que nos separam. Singrará o tormentoso oceano em seu batel esquálido. A tormenta da descoberta ameaça derrubá-lo, jogá-lo nas profundezas, à espera do resgate. Não almeja o fracasso. Por isso, a demora, o estudo, o engendrar paciente. O sorriso tenta disfarçar o temor. Eu também sorrio. Sorrimos mutuamente. É quando endireita o corpo, posiciona-se de novo, solta as duas mãos do sofá. O esforço parece-me insuportável. Tenho certeza de que não aguentará por muito tempo. É o meu reflexo — um reflexo reduzido — sem espelho a me admirar. Parece desequilibrar-se. Com sagacidade, afasta as pernas, aumenta o arco do equilíbrio. Desliza os pequenos pés (talvez ainda inadequados para a aventura) para os lados. O esforço é imenso. Abro os braços em formato de cruz. Espero-o na certeza da salvação, da vitória. Dele ou minha? Quando o primeiro passo se insinua no trilho imaginário, digo-lhe com ânimo “venha”. Ele vem, balança para os lados, sustenta-se na ânsia de conseguir, no desespero de não fracassar, na alegria de compartilhar o encontro desajeitado.
Dois passos e o trem descarrila. A carga espalha-se pela ribanceira. Estatela-se no chão. Diante do fracasso (?) mostra-me os quatro dentes a despontar na gengiva. Lança-me os braços em sinal de socorro. Agarro-o com delicadeza e digo-lhe “parabéns, meu filho”. Ele olha-me e aninha-se em meus braços. Carrego-o até a janela. Lá embaixo, um menino anda de bicicleta. À sua volta, o mundo segue seu ritmo inquieto.