Dois jogadores

Pai e filho andam em vias paralelas na vida, mas se encontram e se reconhecem no campo de futebol, onde o presente pode redimir o passado
Ilustração: Carolina Vigna
01/04/2024

Estamos em extremidades opostas da vida. Ele — um menino magricelo, longilíneo e de movimentos cuja sincronia desafia o equilíbrio do mundo ao redor — encara os dias com o otimismo e a alegria do início da juventude. Eu — um já desgastado espelho a refletir imagens desbotadas — vislumbro a velhice a espreitar num horizonte não tão distante. Somos pai e filho. Ao revirar nosso baú de afetos, é possível localizar quando iniciamos a saga pelos campos imaginários, pela vastidão de um estádio que se resumia à sala de casa. De um dia para outro, lá estava aquele menino trambalhando ao meu redor com uma bola grudada em todos os dedos das pequenas e delicadas mãos. O chute era apenas uma possibilidade. Perambulava meio trôpego, a língua buscando um significado para os sons. Era um pai tentando ser um pai diferente do próprio pai. Ou seja, alguém que não socasse os filhos com murros e pontapés, que não fizesse a esposa de sparing num ringue de boxe doméstico, que não imaginasse que da torneira da pia deveria verter cachaça. Eu era um homem com pouco mais de trinta anos que lutava (e ainda luto) contra uma maldição familiar: o alcoolismo e toda a sua violência impregnada. Mas só eu sabia disso quando sentava no piso de porcelanato e com delicadeza jogava a bola em direção àquele menino que me olhava com legítimo e amoroso interesse. Ali, começamos nossa jornada, que, obviamente, tem data para acabar, mesmo que seja num calendário que o acaso teima em não nos informar.

Eu atravessava de ônibus C., com uma chuteira ordinária numa mochila ridícula, passava por uma favela cujo nome era motivo de chacota — Vila Pinto —, como se a pobreza entranhada já não fosse desgraça suficiente (o ser humano consegue ampliar a pilhéria sobre si mesmo com facilidade demoníaca), até chegar ao campo de futebol que me prometia um futuro inimaginável, cercado de fama, dinheiro e glória. Era muita coisa para um menino daltônico, esquelético e com uma tendência crônica à solidão. Obviamente, não deu certo. Dali, último estágio na tentativa de ser um jogador profissional, rumei para empregos em fábricas e escritórios quando a infância ainda tentava se agarrar às minhas canelas finas. A saída para a frustração (nem tão grande assim) foi seguir jogando nos times de várzea. Ali, sim, tive uma carreira, digamos, sólida como um zagueiro mediano, de habilidades limitadas e dedicação impecável. Meu pai nem desconfia da minha odisseia de menino. O pai sempre me entregou um estádio vazio, lotado de silêncio. E hoje, quando ele não passa de um homem velho e desorientado, tampouco esta queixa faz sentido. Em algum momento da vida, o passado é apenas um fantasma que vamos desenhando à nossa maneira.

Eu estava lá no alto da arquibancada. Na quadra, vários meninos, cujas pernas ainda buscavam a firmeza dos passos, gritavam atrás de uma bola. Meu filho era um deles. Feito formigas atrás de um torrão de açúcar, corriam de um lado para o outro: a bola era o torrão de açúcar. O fim de tarde, duas vezes por semana, após as aulas, era agradável. Sem ter de pensar em nada, apenas sentava e observava aqueles jogadores a testar a lógica do equilíbrio. No primeiro dia, meu filho correu, correu, correu. A bola escapava de seus pés. Cansado, sentou e a pegou com as mãos. O técnico — um rapaz gentil e simpático, que anos depois levaria um tiro durante um assalto e ficaria tetraplégico — fez sua parte: “Com a mão só pra bater lateral”. Meu filho não entendeu nada: afinal, durante muito tempo também jogamos futebol com as mãos — e nunca éramos goleiro. Nunca fui um bom técnico.

Alguns dias depois, ele fez o primeiro gol, o primeiro gol da sua vida de jogador. Eu estava lá no alto da arquibancada. Um livro descansava (qual seria?) ao meu lado quando, de repente, numa confusão de formigas na área, a bola bateu em seu pé direito e entrou lentamente no gol. Ele disparou pela quadra com a alegria de só quem fez um gol na vida sabe qual é. Nenhum dicionário dá conta de explicar.

As pernas esticaram, os músculos se moldam com beleza ao corpo magro, houve a guerra vencida contra as espinhas, os exercícios para endireitar a postura (uma herança genética deste pai arqueado), os muitos treinos em escolinhas de futebol. Agora, no ocaso da chamada pré-adolescência, ele disputa com ferocidade com outros muitos meninos um lugar num clube que leva o futebol a sério — mais um estágio para se chegar à sonhada vida de jogador profissional. Todos os dias sai de C. de ônibus em direção à cidade onde eu moro. Ironicamente, meu filho vem ao meu encontro. No campo perto da minha casa, ele se transforma num divertido espelho do passado.

Atravessei a linha dos cinquenta anos e caminho, sem nenhuma pressa, para a fase final da vida, desprovido de pessimismo ou desânimo pela certeza do vazio que me espera no final do túnel. Agora, disputo um campeonato de veteranos. Sou um senhor magrelo e desengonçado tentando evitar que o adversário conquiste vitórias. Defendo minha área com devoção, método e disposição juvenil. Afinal, é preciso compensar de alguma maneira a falta de talento.

Todos os dias (ou quase) estou lá na arquibancada de cimento cru. No campo, um bando de moleques — alguns com notável talento — obedece a ordens táticas e técnicas. Às vezes, me parece, correm mais do que deveriam. São uma espécime rara de Forrest Gump. Formam um time; meu filho é um dos jogadores há pouco tempo. Movido pela mudança de escola, agora treina longe da sua casa, mas perto da minha casa, num jogo de fraterna geografia. Ao fim das tardes, suspendo o computador, encerro o trabalho e rumo aos treinos. Há outros pais e mães por lá. Em alguns, a expectativa e a ansiedade a cada jogada dos filhos chegam a causar angústia. Parecem apostar tudo nos dribles e chutes de meninos entre quatorze e quinze anos.

Fico a um canto e apenas observo. Evito qualquer palavra, som ou gesto que desmascarem minha alegria de estar ali. Meu filho é apenas um entre tantos atletas. Treina com feroz disposição, corre com passadas firmes e certeiras, domina a bola e a passa com a segurança de quem sabe o que está fazendo. Tem talento e disciplina suficientes para ser considerado um bom jogador.

Encerrado o treino, a tarde começa a dar lugar ao lusco-fusco noturno. Eu o espero próximo à entrada. Com o suor a empapar os cabelos lisos, diz um singelo “oi, pai”. E seguimos para a padaria localizada a poucos metros. O café com leite transformou-se em amorosa rotina. A atendente já nos reconhece. Ficamos ali cerca de trinta minutos, tudo cronometrado para que ele não perca o ônibus de horário quase certeiro. Aproveitamos a breve convivência para conversar em geral sempre sobre um único assunto: futebol. Às vezes, um ou outro tema insistem em se intrometer, mas rapidamente os descartamos. Quando saímos, a noite já envolve o nosso mundo. Vamos lado a lado em direção ao terminal de ônibus. Deixo-o ali e sigo caminhando para casa. “Tchau, pai.” “Tchau, filho.”

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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