Dois bules e uma corda

Uma família em volta da mesa e o formigueiro a perder-se por inúmeros caminhos
01/03/2010

No centro da mesa, dois bules de café; à sua volta, uma família a esfacelar-se.

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Da janela, avistávamos a pequena rodoviária. O ônibus ia lento por entre as casas de madeira e a rua de paralelepípedos. Uma fina neblina cobria a cidade cujo nome jamais esqueci. Os olhos nebulosos espremiam-se na tentativa de ver mais longe. Íamos enroscados no mesmo banco para economizar na passagem. O longo trajeto não desgastava nossos corpos infantis. Dali — a última parada antes de completar o regresso àquela terra estrangeira — ainda percorreríamos mais alguns bons quilômetros até a casa da avó. Tínhamos os dedos lambuzados da gordura do frango que a mãe fritava e jogava num pacote plástico — nossa refeição em direção a um território que a cada viagem transformava-se em esquecimento.

Quando as férias chegavam — após um ano de trabalho e muito estudo —, arrumávamos as malas. O nosso destino era sempre o mesmo: a casa da avó. Para nós, o outro lado do mundo. Até o dia em que este destino se apagou completamente do mapa e do nosso alcance. Era-nos impossível resgatá-lo. Nunca mais voltaria. A mãe catava um a um os três filhos, penteava-nos os cabelos curtos e partíamos à rodoviária com as malas cheias de roupas, expectativa e saudade. O pai quase nunca nos acompanhava neste retorno. Sempre fomos um álbum de figurinhas incompleto.

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Havia sempre um rio. Na pinguela, éramos um bando de formigas a equilibrar malas. Logo em frente, a fumaça do fogão a lenha denunciava as lides da casa. Chegávamos pela manhã com a ansiedade a nos impulsionar em direção àquele útero que sem qualquer dó nos abortara havia tempo. O cheiro dos animais no pasto fazia-nos ter certeza de que estávamos em outro mundo. Regressamos. E durante alguns dias, não seríamos mais os mesmos. A cidade grande ainda não conseguira apagar de nossa pele todos os rastros de carro de boi que a sulcaram. Cavoucávamos em nós os resquícios que nos ligavam aos nossos ancestrais.

A avó nos recebia com o avental gorduroso ou com uma colher de polenta nas mãos. Abraçava-nos a todos com mãos gordas, braços fortes e um sotaque italiano que nunca a abandonou. Aos poucos, o batalhão de tios se reunia à nossa volta. Os vizinhos também apareciam. Era uma festa para receber os parentes recém-chegados da capital. Mãos calosas e dedos reforçados nos afagavam a pele, matavam a curiosidade em busca de descobrir em que animais nos transformamos. Éramos todos já muito diferentes. Nossas bocas pronunciavam palavras estranhas. Nossos gestos pareciam artificiais. Aos poucos, entrávamos no movimento daquele universo. Tínhamos de nos adaptar à ausência de energia elétrica e de água encanada — comodidades a que nos acostumamos com rapidez.

Juntamente conosco, chegavam também os demais parentes urbanos. Muita gente já havia sido cuspida da roça e tentava ganhar a vida entre tijolos, trabalhos domésticos, cartão-ponto e um salário no fim do mês. Aos poucos, a casa da avó ganhava deliciosos contornos, o vozerio se infiltrava pelas frestas da madeira, percorria o galpão e se perdia pelos confins das plantações de milho, feijão, uva, arroz. Aos poucos, a excitação cedia lugar às histórias, aos causos, às lembranças. Arrumávamos as tralhas nos quartos e ficávamos à espera dos planos para o primeiro dia de férias.

Cada tio catava os voluntários prediletos e seguiam para a lavoura. Todo ano era sempre igual. Já sabia quem eu acompanharia. Era sempre ele. Gostava de arar a terra, de cuidar do arrozal que abrigava também pés de melancia. No descanso, o tio pegava uma melancia pequena, rachava-a numa pedra e me passava a metade. Cuspia as sementes na terra para onde nunca mais regressaria. Ajudava a avó a fazer vassouras de piaçava, a confeccionar os cabos de madeira, a limpar a palha. Ou, então, tocava o cilindro para amassar o pão ou a maquineta de moer a carne para a lingüiça. Nunca o trabalho nos causou tanto prazer. A avó admirava nossa falta de jeito, nossos corpos já não se adaptavam mais àqueles afazeres. Seríamos, a cada ano, eternos aprendizes. Os tios riam quando corríamos dos bois, assustávamos-nos com o relincho estrondoso de um cavalo. A distância, não sabíamos distinguir grandes pepinos maduros e amarelos de melões. Aquele mundo nos cegava. Era escuridão e descoberta. Todos gargalhavam, inclusive nós, da nossa cegueira urbana. Estávamos acostumados ao ronco de carros e ônibus e a embalagens plásticas.

Na encosta, sofríamos para catar o feijão. O trabalho tinha de seguir uma métrica cadenciada: arrancávamos uma quantidade de pés e fazíamos um pequeno monte, atrás vinha a carroça a catar a nossa produção. Exaustos, o sol a nos cozinhar a alma, chegávamos ao plano. Lá, a trilhadeira — um estranho monstro de metal a mastigar grãos — esperava-nos. O feijão atirado nas entranhas da máquina saía cheio de ciscos. Em seguida, tínhamos de abanar os grãos e colocá-los em sacos de estopa. Com o suor a encharcar a pele, o pó grudava sem piedade alguma em todos os pedaços do corpo. Todos, direto para o rio e, em seguida, para o almoço.

A mesa quase não suportava tanta gente. Os corpos se roçavam. Nunca estive tão perto deles. Guardo ainda na pele o cheiro de arroz salgado com leite. Ou polenta com leite. As panelas saíam direto do fogão a lenha para o banquete: frango, arroz, feijão, macarrão, milho cozido, carne de porco, quirera. Salames e queijos feitos pela avó eram devorados em nacos gigantescos. O calor de janeiro não arrancava nosso apetite. Para acompanhar a pantagruélica refeição, a avó depositava dois enormes bules de café no centro da mesa. Aquilo sempre me pareceu muito estranho. Em casa, aos domingos, tomávamos coca-cola. Na casa da avó, café bem quentinho. Às vezes, penso em pedir um bule de café no restaurante para acompanhar o almoço.

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Após a morte, a tempestade. Um dia, encontraram o avô a balançar numa árvore. Em volta do pescoço, a corda. Deixou um bilhete com os motivos. O formigueiro começou a perder-se por inúmeros caminhos. O movimento da sobrevivência. Quase todos, inclusive a avó, tomaram o caminho de C. — esta inóspita roça cujo concreto refuga o talho da enxada.

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Há pouco tempo, minha avó me abraçou forte e disse-me com o inesquecível sotaque italiano: “Não lembra mais de mim. Já não me visita”. Senti todos os dedos percorrendo o meu rosto. As mãos e os braços ainda guardam alguma força. Está perto do fim. No caixão, um dos tios dos banquetes regados a café esperava o fim do velório. À sua volta, estávamos quase todos. O pai conversava lá fora. Às vezes, o álbum de figurinhas se completa. Os primos, as tias, os tios. Todos ali em torno da morte. Todos estrangeiros de nós mesmos. Não havia assunto, não havia feijão para colher, melancia para rachar na pedra, vassoura para fazer. Estávamos espalhados pelo mundo. Cada um em seu pequeno universo.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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