Escolhemos os times: de um lado, eu; do outro, ele. Divisão simples para uma partida complexa. Distribuímos as camisas. Impositivo, bate a palma da mão no piso — os pequenos dedos produzem um som delicado — e desafia-me. Desgrudo os olhos da tevê e deslizo o corpo pelo sofá em direção ao assoalho. Nosso gramado brilha sob a luz pregada no teto. O silêncio do estádio devido à falta de público não causa nenhuma decepção. Estamos acostumados a dividir solidões.
Ao seu lado, a bola amarela espera pacientemente o início da partida. Sem qualquer aviso, ele a arremessa em minha direção. O impulso fraco do corpo frágil mostra-se insuficiente. Estico os braços e enlaço a esfera transparente. Aproveito a viagem das mãos para acariciar-lhe o rosto. Nosso futebol admite delicadezas com o adversário. Somos dois times de apenas um jogador cada. Não há ataque, defesa, grandes jogadas, faltas, lances emocionantes, torcida adversária. Inventamos as regras, dispensamos árbitro e bandeirinha. As dúvidas, nós as destruímos com um gesto, um olhar. Em nosso complexo mundo, as coisas se revestem de simplicidade. Tudo se resume ao passeio preguiçoso da bola amarela entre os poucos centímetros que nos separam.
Meu adversário é complacente com a minha falta de habilidade. Evita manter qualquer simetria — dois bonecos de pano a correr pela corda bamba no circo da periferia. Somos, quase sempre, pequenos barcos perdidos na tempestade. Não há gol. Nem comemorações efusivas. Comedidos e discretos no amoroso jogo que inventamos. Finjo concentração extrema ao lhe devolver a bola. Ao agarrá-la meio de lado, grita gol. Dispensamos a lógica. O lance mais prosaico se transforma em ficção particular, um mundo em que as possibilidades ironizam a seriedade da vida.
A pequena palavra aprendida recentemente enche-lhe a boca de poucos dentes, espalha-se pela sala, infiltra-se pelos quartos, rebate na vidraça e alegra a partida sem hora prevista para acabar. Gol. Não há trave, nem rede. O gol imaginário levanta uma torcida de apenas dois aficionados. Somos time e torcida; o nosso próprio espetáculo. Ele é goleiro e atacante. Sempre com as mãos. Subvertemos as regras, inventamos outras. E somos felizes. Ninguém nos vê, ninguém entenderia o estranho futebol que nos une. Nossos times são desiguais em excesso. Faltam-lhe força e ritmo. Sobra-lhe curiosidade. É um jogador determinado, não teme as adversidades. No deserto da sala, dois camelos param para beber água.
Agora, a noite atravessa o mundo, salta o horizonte e nos descobre solitários em nosso jogo. A ausência de estrelas nos traz um sentimento de proteção. O que nos espera do outro lado? Na tevê, um gol verdadeiro chama-nos a atenção. Deixamos o improvisado estádio. Ajudo-o a escalar a imensidão entre o gramado e o cume do sofá. Abandonada, a bola amarela nos observa. Muitos homens correm atrás de uma bola. É branca. Não é transparente. Há muita organização. Um homem de amarelo corre entre eles. Apita, gesticula. Um vaga-lume agitado sobre a relva. A bola vai e volta, corre arisca. Ao meu lado, meu filho aponta para a tela e desenha sons engraçados. O dedo indicador tenta acompanhar a partida. De tempos em tempos, grita gol. Eu o deixo criar seu placar imaginário. Transforma laterais, escanteios, faltas, tiros de meta, tudo em gol. Esquecemos de vez a bola amarela. Teremos muitas partidas a disputar.
Cansado, ele se aninha em meu colo e implora pela mamadeira. Em poucos minutos ressona esticado no sofá. A noite e o silêncio dominam toda a casa. É hora de colocá-lo no berço. Desligo a tevê antes do fim da partida a que assistíamos. Os resultados reais pouco importam. De volta à sala, organizo o nosso estádio. Deixo a bola no centro do gramado. Amanhã, continuaremos esta partida que um dia terá fim e cujo resultado nunca saberemos.
NOTA
A crônica Do meio do mundo, o gol foi publicada originalmente no Vida Breve.