Do amor e do ódio, a faca

Ao percorrer o relato do atentado a um escritor, construiu-se uma ponte entre o pai, o autor do livro e um menino assustado numa noite de pavor
Ilustração: Carolina Vigna
01/07/2024

Foram quinze facadas — no rosto, no pescoço, no tórax. A lâmina a bailar afoita na incerteza do alvo, um homem de mais de setenta anos, acuado pelo pavor do ataque. A morte não participa — ou apenas olha desconfiada à distância — do ritual de uma vingança inventada, conduzida pela ira da ignorância, da desinformação, de um fanatismo atávico e, como tal, estúpido.

Quase dois anos após o atentado, leio com cuidado o relato do escritor indiano em permanente ameaça de morte desde que sua literatura — este inutensílio tão útil para alguns — molestou um aiatolá e todos os radicais de uma religião. Já é um homem velho, cuja morte natural — nossa inescapável sina — se aproxima. Nem por isso, deixaram de tentar antecipá-la a golpes ferozes. Por sorte, o agressor não passava de um estabanado espantalho, de mãos tolas e gestos descoordenados — assassino incompetente. Um jovem afoito em busca da porta do suposto paraíso.

O pai tentou nos matar algumas vezes. É estranho escrever isto: o pai tentou nos matar algumas vezes. Algo não combina, algo está fora do lugar, deslocado no absurdo de uma existência de misérias afetivas e materiais. Um pai não deve tentar matar os filhos. Os filhos não deveriam temer a morte vinda das mãos do pai. É uma lógica ingênua, absurda. Não foram muitas vezes: foram algumas vezes. Talvez este algumas vezes tire um pouco o peso da imagem: do pai a grunhir maldições contra todos nós: a mãe e os três filhos, ainda crianças bem pequenas, sem forças para tentar matá-lo de volta, retribuir uma morte impensável. Era uma luta muito desigual — aquele homem bruto, talhado numa roça bruta, numa família bruta, impulsionado pelo álcool a borbulhar nas veias e no cérebro. Por que nos matar, se não éramos quase nada?

Da outra vez, ele, meu pai, tentou colocar fogo na casa. Em vez de uma faca, tinha nas mãos um galão de gasolina. Diante da casa de madeira, não era um lobo mau a assoprar, mas um sujeito enfurecido na tentativa de transformar a casa num inferno de labaredas — um Nero sem vassalos para aplaudir suas insanidades. Desta vez, eu não estava lá. Já adulto, vivia do outro lado mundo, quando a voz da mãe chegou num fiapo pelo telefone: “teu pai tentou colocar fogo na casa comigo dentro”. Meu irmão conseguiu impedir que as chamas pintassem a escuridão. Coisas muito estranhas aconteceram naquela casa, que jamais se transformou num lar.

A maior sequela visível do ataque ao escritor é o protetor na lente direita dos óculos — o corte profundo o cegou de um olho. Transformou-se num pirata deslocado no tempo. Imaginava encontrar páginas de ódio, de uma raiva represada ao longo dos anos. Encontrei no avançar lento da leitura o amor a irradiar-se pelas palavras, a escorrer pelas entrelinhas. A longa recuperação norteia a narrativa, acompanhada pelo amor da mulher, dos filhos, dos amigos, dos desconhecidos. O agressor está lá à espreita, mas aos poucos vamos deixando-o de lado, como se fosse apenas um coadjuvante numa história de protagonista fracassado. O amor se sobrepõe e vence a tragédia.

(Todo bom livro é uma travessia, um espelho onde encaramos nossos piores fantasmas. Para além do lugar-comum, não somos a rainha malvada a questionar sobre sua falsa etérea beleza. Somos a Branca de Neve multiplicando-se numa floresta, atormentados, fugindo de caçadores, tropeçando em infinitas perguntas.)

O brilho a relampejar na escuridão. Talvez nada disso tenha acontecido. O brilho, a escuridão. Sim, a faca estava lá, içada na mão direita do pai. Saltou da gaveta da pia feito uma jiboia faminta. Então, nos encolhemos. Na incerteza daquela vida, o que mais esperaríamos? Não havia escuridão: uma lâmpada ridícula e pensa iluminava o nosso pavor. Então, o fio da faca (seria a faca de cortar pão?) a relampejar no brilho insípido de uma lâmpada dependurada no forro de madeira. Uma cena patética, se não fosse aterrorizante. Aquele homem, nosso pai, com o demônio a escavar o braseiro nos olhos: “eu vou matar todos vocês”. Já éramos tão poucos.

Quando abri o livro, não imaginava que um atentado em um país distante me arrastaria para um lugar do qual, aparentemente, nunca saí, um lugar escuro, impregnado de lembranças ruins, soterrado pela ira diante de uma vida quase impossível. De que nos servem os livros?, a pergunta circula por aí em sonolentos encontros entre escritores. O amor que norteia e protege os meus dias sussurra-me ao ouvido: os livros sustentam a sua casa, são o sustento da sua vida. Olho ao redor e eles, os livros, estão por todos os lados, em todas as paredes — um casulo de afeto construído ao longo da existência.

Naquela casa da infância havia apenas uma velha Bíblia, cujas páginas amparavam o desespero da mãe. Não era suficiente para arrefecer a fúria do demônio. O demônio troçava de Deus e riscava os cascos no assoalho de madeira. Os riscos seguem lá, mesmo depois de a casa ser derrubada e suas tábuas consumidas pela sanha do tempo. Agora, a Bíblia está nesta casa-biblioteca, protegida de algo que virou espectro de uma lembrança que nunca vai embora. Talvez o pai não quisesse nos matar de verdade, mas nunca tive coragem de perguntar “pai, você queria mesmo nos matar?”. É melhor evitar algumas perguntas, cujas respostas podem nos desagradar.

Ironicamente, o pai e o escritor têm a mesma idade. O pai não leu nenhum livro em sua desgraçada vida. Eu nunca havia lido nenhum livro do autor atacado a golpes furiosos. Simplesmente, jamais me interessei por sua literatura. Agora, ao percorrer o relato do atentado, construiu-se uma ponte entre estes dois homens e um menino assustado numa noite de pavor.

Quando ganhou músculos, quando a vida adulta expulsou de vez a infância que nunca existiu, meu irmão enfrentou o pai. Igualou-se a ele na violência e na ignorância. Desferiram-se socos e pontapés. Uma troca animalesca de ódio represado ao longo dos dias. Engalfinharam-se feito dois animais a lutar por uma sobrevivência desprezível. Não vi a briga. A mãe, algum tempo antes de ser devorada pelo câncer, me contou. Não havia nem tristeza, nem espanto a tecer as suas palavras. Já esperava por isso, pelo embate entre aqueles homens. A cena — pai e filho a socar o corpo um do outro — pareceu-me ridícula: é impossível matar o que já não existe.

Velho e doente, o pai está morrendo. O corpo devastado pelo álcool e pelo cigarro dá sinais de falência. As engrenagens emperraram e lutam para levar vida à frágil estrutura. Mas resiste com teimosia ao fim melancólico. Toda sexta-feira, aponta a cabeça no limite do muro da minha casa — ele mora na mesma rua (feito um cão sarnento, não vai embora) — em busca de uns trocados para o pão e o cigarro, segundo ele. Desconfio de  que a cachaça consuma todas as moedas. Não abro o portão, apenas estendo as notas por cima do muro. Ele arrasta o corpo pela rua feia e malcuidada. É só um homem velho à espera da morte.

No domingo pela manhã, meu irmão passou na casa do pai. Pelo telefone, perguntou se eu tinha livros sobrando para doação. Ele, estranhamente, tem um amigo que lê com voracidade. É um sujeito aposentado, que consome o resto das horas com livros. “Pode ser qualquer um”, disse meu irmão. De tempos em tempos, ele, meu irmão, passa aqui em casa e leva uma sacolada cheia de histórias.

Quando o carro estacionou diante do portão, avistei o pai sentado, meio encolhido, no banco do passageiro. “Vou comprar comida pro velho”, disse meu irmão, como se precisasse explicar a companhia desajeitada na manhã de domingo. Agora, percebo que meu irmão sempre chama o pai de velho. Mas não é um velho com sinais de algum carinho, é um velho impregnado de indiferença. Eu chamo o pai de pai, apesar de que esta palavra só tenha sentido quando vinda da boca dos meus filhos em minha direção. A palavra pai tem estranhos significados ao meu redor.

Após uma ou duas frases, entreguei a sacola com vários livros a meu irmão. Ele avançou portão afora, entrou no carro e deu a partida. Da janela do passageiro, o pai fez um breve aceno com a mão direita.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho