Dias frios se aproximam

A neve é branca. A morte é roxa. A mãe está no caixão. Mãos cruzadas sobre o peito — o óbvio gesto final
Ilustração: Fabiano Vianna
01/10/2013

A neve é branca. A morte é roxa. A mãe está no caixão. Mãos cruzadas sobre o peito — o óbvio gesto final. O terço e Jesus Cristo espremidos entre os dedos. Estamos ao seu redor. Na casa, deixamos os restos. Depois, vamos levá-los a outro lugar, a outro corpo. Há uma semana, está morta. Deitada na cama, o corpo retorcido, as pernas rígidas, a cabeça deslocada para a direita. Agora, a casa vazia, o silêncio incrustado na parede, nos tijolos úmidos. A infiltração na sala desenha uma mancha disforme. Uma indesejável obra de arte. No caixão, as pontas dos dedos da mãe estão roxas. Acordo com a neve. São quase oito horas. Antes, havia sol. Sete dias se passaram desde que encontrei a mãe estirada, dura e fria sobre as cobertas bagunçadas. O sol sumiu. A mãe sumiu. A neve despenca com delicadeza sobre o telhado da casa vazia e silenciosa.

A avó chora ao lado da filha morta. A primogênita morreu. Ela — velha, baixinha, no fim — ainda vive. As irmãs estão ali. Os irmãos vieram de longe. Da roça, viajaram quase setecentos quilômetros. Somos todos muito parecidos. Na tristeza, ainda mais. Contrato um marceneiro para desmontar o guarda-roupa. Faço pilhas de roupas na sala. A cama é levada para outra casa. O padre chega. Todos rezamos. Rezo também. Sempre rezo pela mãe. Ela acredita que o Céu é o fim de todos nós. Vejo a ponta roxa dos dedos. É o que consigo ver. Não sei se a mãe chegou ao Paraíso. As caixas de papelão são grandes e resistentes. Divido as roupas com algum método. Blusas e casacos; camisetas, bermudas e vestidos; cobertores, lençóis e travesseiros. Coloco tudo nas caixas de papelão. Deixo-as no meio da sala. Nevou há alguns dias. O frio é intenso. Entra pela casa, revira os cômodos e gruda na pele.

O pai comprou pão, mortadela e café. As tias trouxeram bolacha e chá. A mãe ficará a noite toda no caixão. O velório se arrastará pela madrugada. À sua volta apenas os mais obstinados com a morte alheia. Volto para a casa vazia. Tento dormir um pouco. Pela manhã, a mãe morta no quarto ali embaixo. Em breve, estará no túmulo, ao lado da filha. Agora, nossa família só tem homens: eu, o irmão e o pai. As mulheres se foram antes do tempo. Na nossa família, homens não sabem amparar a solidão do outro. Seremos solitários cada um a sua maneira.

Passo fita adesiva com rigor no fundo das caixas. É preciso evitar que se rompam durante o transporte até a instituição de caridade. Levarei o que sobrou da mãe para aquecer corpos desconhecidos. A neve cobriu o telhado de casa. Uma crosta bem fininha. Logo, o sol a transformou em água. A neve escorreu pelo toldo e molhou o chão de piso bruto. Na esquina, a pequena fábrica de portões interrompeu a produção. Os funcionários — quatro homens de gorros, luvas e jaquetas grossas — ficaram olhando os flocos riscar o céu. Logo, voltaram para dentro. O barulho das máquinas continuou manhã afora. Um cachorro passou lentamente. Alguns pais e seus filhos em frente às casas. Tudo muito rápido. Não mais que quinze minutos. A neve acabou. As roupas da mãe estão nas caixas à espera do carro que as levará.

O padre fez um longo sermão sobre justiça. Não entendi o que aquilo tinha a ver com a mãe morta. Ou com as unhas roxas cruzadas sobre o peito, próximas às flores de plástico. O padre falava alto, tentava articular bem as palavras. Às vezes, engasgava. Retomava a palavra divina. A sala lotada era silêncio e tristeza. Encontrei muitas fotografias em caixas de sapato. Deixei-as de lado. Não sei o que escondem aqueles retratos. Noto que estou em alguns. Fotos enviadas de um tempo que há muito deixou de existir. A mãe não está em nenhuma fotografia. Nunca gostou da própria imagem. No caixão, seria impossível fugir do derradeiro retrato. Neste, ela também não sorriria.

O padre atira água benta para todos os lados. Nenhum pingo me acerta. Estou no fundo da sala. O padre sai pela lateral. Passa ao lado da cozinha onde estão os restos de pão, mortadela e bolacha. Me aproximo do caixão. As unhas ainda mais roxas. Me despeço da mãe. A tampa do caixão é a última peça do quebra-cabeça. Ajudo a apertar os parafusos. Colocamos o caixão sobre um carrinho de rodas grandes. Eu, o irmão e o pai carregamos a mãe. Agora, somos três homens e nenhuma mulher. O sol forte me incomoda. A previsão é de que neve na próxima semana. Vou doar as roupas da mãe. Serão úteis nos dias frios que se aproximam.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho