Eu a encontrei. Algo inesperado, confesso. Na banca de jornais e revistas, ao pé do restaurante onde sempre almoço, você me fulminou. O tempo lhe fez bem, trouxe-lhe certa serenidade aos traços do rosto e amenizou o seu aspecto assustadiço daquele triste começo dos anos 90. Há ironia no canto da sua boca na foto que ilustra a capa da revista? Ou é apenas impressão deste que lhe escreve após tanto tempo? Você não me conhece. Mas, sou obrigado a lhe dizer, o seu espectro me acompanha nas noites insones, nas tardes nubladas, nas manhãs chuvosas, nas férias da família, na correria do trabalho. Não, eu não lhe amo, não nutro nenhum amor platônico, nenhuma obsessão sexual. Nada disso. A senhora, simplesmente, me ensinou de que a morte é capaz. E a lembrança, como não poderia deixar de ser, é triste, avassaladora.
Então, a senhora vive em Nova York. Nunca estive aí. Conheço pouco do mundo. Fico escondido aqui em Curitiba, uma cidade no centro do universo possível. Tenho mulher e dois filhos. E muitos livros. Meu avô mora no cemitério. Dizer assim pode soar estranho, uma conversa de louco. Não estou aqui para falar de mim. Mas dele — meu avô. Ele se matou. Tinha pouco mais de 60 anos. Era um italiano forte, de olhos azuis e mãos gigantescas. Homem trabalhador. Um dos tantos filhos de imigrantes que buscaram no Brasil um refúgio contra as atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Mas ele se matou. Foi logo depois de março de 1990. Eu tinha 17 anos. A senhora, 36 anos. Hoje, tenho 38 anos. A senhora, 57 anos. Meu avô não tem idade alguma. Ele se matou. Fez o óbvio: pegou uma corda no paiol de milho e pendurou-se numa árvore. Ele morava na roça, cultivava a terra, um pequeno agricultor. Daqueles que cavavam o solo em busca da sobrevivência. Um dia, deixou o corpo a balançar na solidão da corda.
É possível medir a distância entre o chão e a sola dos pés do suicida? Que medida se usa? Talvez a senhora diga que a inflação galopava na casa dos 80% ao mês quando decidiu confiscar a poupança dos brasileiros. O chamado Plano Collor. É possível medir distâncias suicidas em percentuais? Ou seria mais adequado o símbolo do infinito? Meu avô era um dos inúmeros brasileiros que tinham dinheiro na poupança. Para pagar dívidas, comprar uma terrinha, honrar compromissos. A senhora sabe o que é isso? Desculpa, não quero ser hostil, apenas lhe contar o que aconteceu. Mas a senhora (ou o seu governo) confiscou o dinheiro do meu avô. Ele não conseguiu pagar as dívidas, honrar os compromissos. A senhora sabe: honrar compromissos para algumas pessoas é muito importante. Talvez não seja necessário dizer isso, mas escrevo esta carta para deixar tudo muito claro. Veja que estou sendo direto e simples na construção das frases. Não que eu duvide da sua capacidade de compreensão, mas é para evitar qualquer mal-entendido. Meu avô entrou em depressão devido às dívidas, aos compromissos. Sofreu em silêncio. Nunca deu sinais suicidas. Dizem que os suicidas silenciosos são os mais decididos. Talvez. Mas esta teoria não me interessa nada. Enfim, um dia encontraram o corpo do meu avô a balançar na tristeza infinita de uma tarde qualquer.
Quando ele morreu, eu trabalhava na Gazeta Mercantil. Veja que ironia: um jornal puramente econômico. A senhora era sempre notícia. Todos os dias. Eu não entendia nada de economia. Acho que aos 17 anos não se entende nada de nada. Mas eu tive de entender um pouco mais sobre a morte. Dos confins de Santa Catarina chegou a notícia: meu avô estava morto. O homem que nos visitava de tempos em tempos, pegava-me no colo e acariciava-me com o seu indestrutível sotaque italiano. Pior: eu teria de levar a fúnebre notícia até minha casa. Um desajeitado mensageiro da morte. Mas não foi necessário abrir a boca. Ao chegar, já encontrei minha mãe afundada no sofá. Ela chorava feito uma criança. A morte do pai a alcançara. Como diz o ditado: notícia ruim chega rápido. Nunca havia visto minha mãe chorar. Ela parecia uma criança perdida dos pais numa rodoviária qualquer. O rosto espremido entre as mãos, grunhia algo como “nunca mais vou ver o meu paizinho”. Era muito triste de ver, ouvir, sentir tudo aquilo. Um pequeno animal indefeso estirado no sofá da sala. Era a primeira vez que a morte me acariciava o corpo com tanta intimidade.
Não li o livro Zélia, uma paixão, do Fernando Sabino. Mas agora leio na revista, em cuja capa a senhora me encara, que o seu amante Bernardo Cabral, então ministro da Justiça, entregava-lhe bilhetinhos por debaixo da mesa durante as reuniões de trabalho. Em um deles, que a senhora diz guardar, ele teria escrito: “Esta sua saia curta está deliciosa”. Seria possível medir a distância entre o chão e a sola dos pés do suicida em “saias curtas e deliciosas”? Pura maldade, não é mesmo? Esqueçamos este assunto. Mas me causa grande tristeza que, enquanto muitos se penduravam em árvores, envergonhados, falidos, deprimidos, a senhora dançasse ao som do bolero Besame mucho, trocasse bilhetinhos sacanas por baixo da mesa e tivesse orgasmos ministeriais com um senhor casado. É claro que a senhora tinha todo o direito. Mas para quem está do outro lado da morte é quase inaceitável. Espero que a senhora me entenda, confortavelmente instalada no seu apartamento nova-iorquino avaliado em US$ 2,5 milhões.
A reportagem da revista se interessa com insistência em como a senhora mantém um padrão de vida tão elevado em Nova York, uma das cidades mais caras do mundo. Isso realmente não me interessa. Dizem que a senhora participou do esquema PC Farias, aquela roubalheira danada que levou à ruína o governo Collor. A Justiça a inocentou. Não me importo com isso. Queria apenas lhe contar esta passagem da minha vida: o suicídio do meu avô. Uma de suas respostas na entrevista me parece emblemática: “Eu sinto muito pela parte ruim, mas, não tem jeito, em economia, em toda decisão que você toma, alguém ganha e alguém perde”. É verdade. Sempre que encontro minha avó, sempre que vejo minha mãe, sempre que olho no espelho e encaro aquele adolescente do início dos anos 90, eu sei muito bem quem perdeu. Mas quem ganhou?
Agora, para me despedir, volto ao início desta carta. O tempo lhe foi generoso. O cabelo liso (fez chapinha?) lhe cai muito bem, como dizem os cabeleireiros. Aqueles cachos (usava bobes?) dos tempos de ministra me pareciam horríveis. As marcas no rosto são suaves. O corpo magro lhe traz uma delicada elegância. A senhora acerta plenamente em se cuidar. A saúde é o que mais importa, não é mesmo? Bom saber que a senhora acorda cedo, toma café com as crianças e três vezes por semana faz ginástica. E ressalta: “à medida que você vai ficando velha, tem de se cuidar”. Concordo. Um conselho: fique longe de cordas. Eu também estou envelhecendo. Que bobagem: todos estamos. Nestes 20 anos sem notícias da senhora, terminei o curso de jornalismo, casei, tive dois filhos, minha irmã morreu, minha mãe está doente, li muitos livros, escrevi alguns textos. E sempre que me lembro do meu avô, vejo alguém a lhe estender uma corda.
Fique bem. Um abraço, Rogério.