Carta a um suicida

Agora não posso mais ver teus olhos e tampouco tocar-te, pois estás longe, numa eternidade anunciada ao nascer
01/11/2000

Agora não posso mais ver teus olhos e tampouco tocar-te, pois estás longe, numa eternidade anunciada ao nascer. Sim, choro a tua perda. A tua partida. Não o tenho mais ao lado. Por que partiste sem me avisar? Foste para longe, para um mundo desconhecido. E agora estou só tal qual minha chegada nesta terra de luz. E fez-se a luz. Não. Fizeram-se as trevas e aqui estamos todos. Mas tu resolveste partir antes (?) do tempo. Agora, ouço a cada instante o tiro. Sinto o gosto do sangue que escorreu pela tua face. Por quê? Não há respostas. Sinto saudades. Não apenas de ti, mas também de mim, pois tu eras aquilo que eu sempre sonhei ser: eu mesmo. A tua morte é o meu fim. Um fim anunciado naquele primeiro porre juntos. As pernas bambas e o vômito a escorrer farto pela roupa. Por que foste sem antes tomarmos o último trago do conhaque amargo? Por quê?

Sei que fizeste a escolha certa. Mas não a aceito. Tinha ainda algumas palavras a dizer. E agora, quem vai me ouvir? O teu silêncio é o meu desespero. Assim, resta-me apenas esperar a chegada da coragem. Coragem de partir também. Mas enquanto esse dia não chega, fico a esperar a vida passar, lenta, chata e atrozmente suicida. Na tevê, todos esses dias sentindo a tua falta, assisti à imbecilidade humana em doses gigantescas. Pobres seres passaram madrugadas a torcer para cavalos, braçadas, boladas, mulheres, homens e gays. Todos queriam uma medalha de ouro, enquanto eu pensava na tua ausência e no estrondo do teu cérebro. Sim, somos umas bestas a percorrer o mundo. Queremos ganhar uma medalha de ouro no futebol, vôlei, basquete etc. Besteira, meu caro amigo, tudo uma grande besteira. O ser humano é a besta de si mesmo. Inútil, fútil, etéreo, ignorante e feliz. Sim, pois a felicidade requer altíssimo grau de ignorância, enquanto que a pseudo-felicidade, muitas vezes, restringe-se apenas a algumas cervejas.

Mas não falemos da inutilidade dessas bestas que são os seres humanos, falemos da saudade que sinto de ti, meu amigo. Agora enquanto escrevo esta carta — noite de sábado —, estou só e triste (piegas assim como a vida), pois solidão e tristeza são péssimas companhias, mas muito fiéis. Na tevê, um cavalo e um homem (?) preparam-se para ganhar a medalha de ouro. Os ignorantes assistem a tudo e torcem para que o cavalo pule obstáculo e, assim, “ganharemos” uma medalha de ouro. Por favor, morte às bestas. Ah!, como o mundo seria mais feliz se fosse povoado apenas por cavalos!

Agora, que foste para sempre, leio tudo o que deixaste escrito: poemas, contos, crônicas e aquele pedaço de romance. Não te preocupes, meu amigo, nada será publicado. Ora, tais textos são apenas nossos e, para falar-te a verdade, continuam muito ruins. Não, nem mesmo na morte te trairei. Mas os teus poemas me fazem ainda mais infeliz, pois ali encontro mais presente a tua morte. O teu adeus sempre perene em versos frouxos, mas que me fazem chorar. Lembro-me de: “te conheci/sou forte/ontem, tinha medo da vida/hoje, tenho medo da morte”. Mas tu perdeste o medo da morte e partiste, assim, no estrondo de um tiro. Por que não te dependuraste em uma árvore? Aí poderia recordar-me outros de teus versos (fracos, como sempre): “Quando cheguei à praça, ainda pude ver o homem enforcado balançar as pernas no vazio.” E não tive essa oportunidade. Ou por que não atiraste teu magrelo corpo num rio? Por quê?

Sim, as dúvidas reverberarão para sempre em mim. Ou até o dia em que tenha tanta coragem ou medo e parta no silêncio suicida. Agora lembro que deixaste dois livros sobre a minha estante. Quero devolvê-los e não posso. Um do poeta irlandês Seamus Heaney — maravilhoso — e outro do desconhecido escritor António Pinto da Costa, que no século 16 escreveu, em Lisboa, O Pensamento Político das Formigas — formidável romance sobre o aniquilamento da raça humana por ela mesma. Talvez todos sejamos suicidas, mesmo que muitas vezes esse suicídio coletivo seja ao revés e o levemos ao extremo extermínio do semelhante.

E por mais que queira, não consigo livrar-me da tua presença. Tu és um fantasma a atormentar-me o espírito — não santo, pois não acredito nessa pantomima religiosa que impregna nossa breve existência. Falo sim do espírito que é meu corpo e que em breve esfacelar-se-á para sempre. Mas ficam aqui ao meu lado, para sempre (um “sempre” sempre muito breve), as reminiscências da nossa vida. Da nossa infância estropiada na terra batida dos campos de futebol, das brigas, das namoradas, da falta de dinheiro para pegar o ônibus, dos porres, do nosso primeiro emprego juntos, do curso de filosofia e depois fomos perder tempo com o jornalismo, e da nossa viagem à Espanha, dos outros tantos porres juntos, paella etc.  Por que me abandonaste agora que voltei a viver ao teu lado? Voltamos juntos, mas tu resolveste partir antes da hora. Agora, encontro-me aqui e já não há mais volta. Apresenta-se a vida e dela fujo, pois não o tenho mais ao meu lado.

Por que morri antes de viver?

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho