Prezado Deus,
Não sei por onde o senhor anda. É difícil encontrá-lo. Mas não se pode perder a esperança. A mãe vive pelos cantos em busca da sua ajuda. Quase todos os dias, a encontro encolhida no sofá, abraçada à Bíblia. Balbucia algumas palavras. Tudo inaudível. A boca da mãe desaprendeu a falar. Impressiona-me como ainda acredita. Eu desconfio de tudo. Mas não lhe escrevo para reclamar. Uma reclamação divina é o que de menos necessito. Minha fama não é das melhores. Os dias têm sido de tempestades. O tempo que corre é de pavor. Mas quais tempos não são de pavor?
Na semana passada, encontrei um porco morto na minha rua. Parecia macumba, mas era apenas um animal embolado ao capim à beira do barranco. Possivelmente tenha escapado de algum chiqueiro da vizinhança. Como morreu? Não tenho a menor ideia. Parei para olhá-lo. Um porco sempre me impressiona. Revirei o corpo rosado do bicho. Nenhuma marca de violência. Deixei-o lá. No fim da tarde, quando retornei a Campo Largo, havia sumido. Para onde vão os porcos mortos e abandonados?
Não lhe escrevo para falar de um moribundo porco. Tampouco vou lhe contar sobre a puta assassinada nas encostas de Curitiba. Doze facadas, li no jornal. Parece que foi coisa de um travesti. Briga pelo ponto. A mancha de sangue ainda estava desenhada na calçada quando passei a caminho do trabalho. O sangue ressecado é uma indesejável obra de arte. Enfim, a puta e o porco me acompanharam a semana toda.
Esqueçamos este assunto um tanto tétrico. Escrevo-lhe para contar que as coisas não estão nada bem. A vida andava difícil. Agora, complicou de vez. Desconfio de que a mãe esteja derretendo. É uma coisa muito estranha. Quando eu era criança, assisti a um filme que me impressiona até hoje: O incrível homem que derreteu. Um astronauta volta de um vôo a Saturno. Na viagem contrai uma doença desconhecida. Uma infecção faz sua carne derreter. Para evitar o derretimento total, é obrigado a comer carne humana. Sai pelas ruas feito um canibal faminto. A cena emblemática é a orelha descolada da cabeça, balangando no raminho de um arbusto. Não lembro o final do filme. O homem deve ter derretido até fim. Algo bastante óbvio. Dia desses, contei esta história ao meu filho de quatro anos. Ele se divertiu muito. Adora história de terror, espaço, dinossauro. Mas o personagem preferido dele é o senhor. Isso mesmo: o senhor. Todas as histórias dele começam em Deus, passam pelos dinossauros e chegam aos dias de hoje. Ele sempre me pergunta: “Se Deus é o pai de todos nós, quem é a mãe de Deus?”.
Voltando à minha mãe. Sério, ela está derretendo. Na quinta-feira pela manhã, desci a escada em caracol e a encontrei bufando no sofá. Parecia um urso que acabara de levar um tiro. Dois animais mortos na mesma semana: um porco e um urso. Ela me olhou apavorada. Não consigo respirar. Li nos lábios ressecados da mãe. A voz não sai. É engraçado ter uma mãe quase muda. Já nem lembro mais da sua voz. Mas tudo bem: em breve, a mãe vai estar morta e enterrada. A voz de um morto não serve para nada. A não ser a do Frank Sinatra.
Como a mãe parecia que iria morrer feito o porco na beira da rua, ou a puta esfaqueada, tive de tomar uma decisão. Arranquei toda a traqueostomia do pescoço dela. Tudo. Num golpe só. E o senhor não vai acreditar: a mãe está derretendo. Isso mesmo: derretendo. Lembra um pouco plástico velho queimado. O cheiro é muito desagradável. É terrível. Está derretendo. Deve ser isso. Só pode ser isso. Quando arranquei os tubos de metal do pescoço da mãe, saiu uma gosma horrível, um líquido viscoso, grosso, que escorreu na pele murcha e rugosa. Fiquei com muito nojo, confesso. Não imaginava que ela estivesse derretendo. Mas, convenhamos, a gente nunca está preparado para abraçar uma mãe líquida. A mãe tem um grande buraco no pescoço. Nunca tinha visto. Poderia enfiar o dedão da mão direita e remexer nas entranhas da mãe. Sempre retiro a traqueostomia para limpeza, mas jamais havia arrancado toda a parafernália. No fim, deu tudo certo. A mãe voltou a respirar. Eu consegui devolver os tubos ao devido lugar. Tudo certo. Mas agora só estou preocupado com este derretimento da mãe. E se um dia eu chegar em casa e ela tiver sumido? Ou se transformado em apenas uma mancha no sofá deformado? A incrível mãe que derreteu.
Mas o motivo desta carta é outro. Escrevo-lhe porque encontrei um bilhete que a mãe escreveu. Sim, ela escreve. Do jeito dela. Mas dá para entender. Nada que um esforço divino não resolva. Acho que precisava lhe contar, pois parece que a coisa é contigo. Na sexta-feira à noite, peguei a Bíblia da mãe para ler o Livro de Jó. É a parte de que mais gosto. Para minha surpresa, na página 757, o bilhete num pedaço ordinário de papel — o mesmo em que ela escreve a lista do mercado. Como a mãe não fala, deve estar preocupada com a possibilidade de o senhor não a escutar. Então, resolveu escrever. E colocou no meio da Bíblia — espécie de correio santificado. Quem sabe seja o caminho mais curto para que o senhor dê uma força. Ela está precisando. Então, só me resta reproduzir o bilhete da mãe (eu dei uma melhorada no estilo desesperado): “Pelas intenções do terço. Pela paz da minha família. Pelas almas dos meus falecidos. Pela paz dos meus filhos. Pela saúde do meu neto. Pela minha saúde. E que Deus nos ajude na fé”.
É isso, Deus. Se o senhor puder dar um retorno à mãe, agradeço. Ao que parece ela está lendo o Livro de Jó. Por motivos bastante óbvios. Se o senhor resolver falar pessoalmente com a mãe aí no céu, por favor, avise-me com uns dois dias de antecedência. Preciso de um tempo para organizar as coisas por aqui.
Fique bem.
Um abraço. Rogério