1.
O pai tentou nos matar algumas vezes. Nunca conseguiu. A faca reluzia na casa descarnada, de tábuas gastas por um tempo incerto. Quando ele apontava na esquina, na ladeira onde ficávamos dependurados, o corpo trôpego, a incerteza do equilíbrio a tecer um ritmo desesperado, o pavor roçava-nos no quarto — frágil esconderijo contra um lobo faminto. Nem sabíamos da história dos três porquinhos, mas habitávamos a casa de madeira. A de palha ficara na roça. Nossos nomes não eram Cícero, Heitor e Prático. Carregávamos nomes iniciados todos pela letra R. O pobre tem manias estranhas ao nominar seus sobreviventes.
O olho do pai era brasa no rosto vincado, em cuja testa saltava a cicatriz desconhecida. Não nos iluminava. Queria nos incinerar, retorcer nossa pele de criança, transformar a gordura inexistente em torresmo ordinário. Às vezes, para nossa alegria, íamos lá na rua arrastar o pai até em casa. Era a certeza de que naquela noite não teria forças para desejar a morte de ninguém. O peso do corpo aliviava a nossa sina. Carregávamos o pai para debaixo do chuveiro. A água nos livraria temporariamente do brilho cego da faca a relampejar na escuridão.
Era sempre igual: olhava-nos com ódio, balbuciava sílabas desconexas e abria a gaveta da pia. A faca saltava feito uma jiboia faminta. A mãe gritava. E nós — três crianças, quase porquinhos rosados — nos encolhíamos a um canto. Eu mato um de vocês. Qual seria? De quem seria o sangue a escorrer no assoalho de frestas ridículas? O trovão ecoava nas telhas, reboteava no beiral e estufava a pança magra da casa.
Mas sabíamos que o pai não desejava nos matar. Não teria capacidade. Era o demônio, dizia a mãe agarrada ao terço, à reza miúda na boca banguela. Na parede, à cabeceira da cama, aqueles galhos secos benzidos. Tínhamos de acreditar em algo. Mas aqueles tufos de folhas sem vida colhidos no Domingo de Ramos não suportariam a lâmina desgovernada. O demônio morava no bar, a poucos metros do ponto de ônibus, dentro de uma garrafa. A garrafa atirada ao mar só nos trazia tempestade.
2.
A cadela era uma ironia a rosnar no terreiro. Ninguém sabia como surgira. Um dia, fazia parte da nossa vida. E por ali ficou. Raspava o pelo eriçado nas ripas da casa. Mancava de uma das patas traseiras. Era uma risível mistura de pastor alemão com uma matilha de vira-latas. Carregava no lombo o nome Princesa. Uma estropiada princesa num reino de flagelados.
Um dia, o pai nos quis bem vivos. Precisava da nossa ajuda para se livrar do incômodo canino. Princesa não o agradava nada. O plano era prosaico: levar o animal para bem longe de casa. Que passasse fome sozinha. Ou encontrasse outro reino de famintos para ostentar a decrépita realeza. Esperamos a noite cobrir a floricultura onde morávamos de favor. O pai ligou a velha Kombi e enfiamos Princesa na parte de trás, perto do barulhento motor. Eu e o irmão seríamos seus algozes — dois meninos assustados na escuridão. Seguramos Princesa nos solavancos que o pai produzia ao volante. A amparamos como se não a estivéssemos levando ao cadafalso, à fogueira em praça pública.
À beira do matagal, o motor da Kombi silenciou. O pai abriu a porta e arrastou Princesa para fora. Ouvimos um “vai” firme e decidido. Princesa permaneceu estática. Ganiu seco e baixinho, resignada com a sentença. Por que o pai nos levara com ele? Talvez quisesse nos mostrar um destino possível. Talvez quisesse nos deixar lá também, ao lado da cadela que surgira em nosso terreiro.
Na volta para casa, nada falamos. O pai ao volante. Nós, sobre o motor ao fundo.
3.
O pai ainda tentou nos matar mais algumas vezes. Nunca conseguiu. Fugíamos sempre. Não era difícil escapar de sua fúria mambembe. Éramos pequenos palhaços a animar o público à espera da atração principal. Um dia, cresceríamos e nunca mais teríamos de alimentar aquele espetáculo. Restaria apenas a lembrança das noites insones.
4.
Quando a mãe abriu a porta para nos despejar em direção à escola, o sol infiltrava-se por entre samambaias e azaleias. O dia nascia. Ficamos ali parados. Ninguém se mexia. Princesa vinha em nossa direção. Quanto se passara desde que a abandonamos no matagal? Não sabia ainda medir o tempo dos adultos. Mas tinha certeza de que eram muitos dias. A cadela mancava da pata direita traseira. Arrastava o focinho rente ao chão. A poeira não parecia incomodar. Aproximou-se lentamente. Olhou-nos com indiferença. Aninhou-se ao lado da gamela, cuja utilidade era nenhuma. Quando voltamos da escola, Princesa permanecia deitada ali. O pai deixou-a ficar, sem qualquer explicação. Passamos a brincar todos os dias em volta de Princesa. Ela parecia gostar da nossa companhia. Nós também.
É mais fácil amar um cão do que perdoar um pai.
NOTA
A crônica Cachorros sempre voltam foi publicada originalmente no suplemento Pernambuco.