Bicicletas ao abismo

No horizonte, o menino pedala zombeteiro após tocar o triângulo de fogo e perdição
01/04/2010

A infância é uma batalha perdida. Ouço com atenção o que me diz Vila-Matas — o homem que encontrei por acaso num café em Barcelona. Ele lia o caderno de esportes do El País. Eu, os poemas de Antonio Machado. Perguntou-me por que ainda lia poemas. Sem pensar muito, respondi: “Porque as folhas das árvores sempre caem”. O insólito da resposta — na verdade, um verso de Machado — e meu trôpego espanhol nos aproximaram. Sentei-me à sua mesa e descobrimos que ambos, de alguma maneira, estávamos à beira do abismo — uma expressão dele, que surrupiei para meus poucos escritos. Contou-me, com certa apreensão na voz bem delineada, que era escritor. Eu não o conhecia. Não o lera até então. Disse-lhe que sonhara em ser jogador de futebol. Mas meus dribles de ganso bêbado me dissuadiram da idéia ainda na adolescência. Ele me falou dos abismos que o cercavam, da vontade de desaparecer, e, olhando-me irônico, soltou: “A infância é uma batalha perdida”. Ele tentava desaparecer no presente. Eu, no passado.

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Na primeira batalha havia uma bicicleta a desenhar uma reta no horizonte. Da baixada, a silhueta do menino surgia imponente no alto. Pedalava com gosto e devassidão. Ele escapara das garras dos adultos e nos zombava. Nós, pequenos delinqüentes, éramos interrogados. “Quem foi?”, todos queriam saber. A menina nos olhava com pena e curiosidade. Não tínhamos coragem de admitir. Éramos apenas crianças a descobrir o corpo. Um bando de meninos sarnentos — pequenos urubus a saborear a carniça pela primeira vez. Não havia escolha: tínhamos de admitir, não um crime, mas um pecado. Iríamos arder no inferno. As orelhas avermelhadas, presas nos dedos ossudos dos adultos, alertavam-nos de que tudo poderia piorar muito mais. No alto, a bicicleta, sombra maligna a nos apavorar, enchia-nos de raiva e fragilidade. Foi ele, tentávamos argumentar. Mas ele estava longe. Nós, presos, apanhados ao vislumbrar, e nada mais, os vãos daquelas pernas finas, de jetica, como diria a mãe, sem nunca explicar o porquê da expressão. Pequena saracura a nos enfeitiçar no banhado que dominava com maestria. Não pedimos para ver. Ela nos mostrou. Todos à sua volta. Ela, altaneira potranca das ancas virgens, a troçar da nossa falta de jeito. Mostrou-nos, sim, primeiro o rebolado, o corpo infantil a desnudar-se. Aos poucos, sábia e pérfida, expeliu carnes, desejos e cores em nossos olhos, em nosso espanto. Havia entre as pernas um corte fino, sem pêlos, um triângulo bem desenhado — a imagem do inferno com seus demônios a nos enfeitiçar: venham, venham. Ouvíamos petrificados. Queríamos, sim, tocá-la. O que seria aquilo a despontar na altura do peito? Pequenos grãos tremulavam sob a pele. Nunca tão de perto. Nunca tão ao alcance. Estátuas de sal, movíamos apenas os olhos de cima para baixo, na mesma velocidade com que o pecado se infiltrava pelas nossas almas perdidas.

Quando algo parecia explodir em nós, os dedos do tinhoso tocaram o triângulo. Delicado no início; com ferocidade logo em seguida. Aquele que pedala no horizonte, a confundir-se com o céu e as nuvens ao fundo. O grito nos espantou: revoada de pássaros a pular cercas de arame farpado, muros improvisados. O açoite da donzela pegou-nos pelos calcanhares: ínfimos Aquiles a fugir. Tombamos, abatidos por dedos imensos que nos apertavam as carnes pecadoras. Doera? Por que gritara? Não queria nossas mãos pequenas e imundas, perdição que nos assombra? Lá no alto, a bicicleta e um sorriso a tripudiar a nossa derrota.

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O café esfriara durante a conversa. Pedimos outro e um “bocadillo de jamón”. Digo-lhe que, como o personagem de Robert Walser, nunca aprendi a andar de bicicleta. Minhas habilidades práticas, quase todas, beiram o ridículo. Meu DNA é desengonçado, atrapalhado e distraído. Alguns apostavam que eu não vingaria, não teria sobrevida. Mas teimo em contrariar a maioria. Vila-Matas conta-me que ainda na infância tentara ser goleiro. Desistira após considerar impossível calcular a velocidade da bola e a projeção de seu corpo ao encontro dela. Ela, a bola, era sempre mais rápida que seus olhos aparvalhados. Conversamos sobre um dos gols mais impressionantes de Pelé — aquele que nunca aconteceu, no jogo contra o Uruguai na Copa de 70. O passe em profundidade encontrou Pelé a simular um esbarrão com o goleiro e a bola. Seria patético, se não fosse genial. Pelé passa por um lado, a bola, por outro. O goleiro não intercepta nem bola, nem Pelé, que escapa do outro lado: um gênio a fazer trivialidades. O chute sai enviesado, a bola raspa a trave e a cena é imortalizada. Enquanto Pelé não marca o gol, um menino passa à nossa frente a equilibrar-se na bicicleta. Invejo a perícia de quem pedala rumo ao abismo.

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Meu irmão bem que tentou. Segurava-me com cuidado e gritava: “Pedala, pedala”. Eu pedalava com todo o vigor possível para um corpo magricelo. A força tinha de ser redobrada devido a um detalhe: a bicicleta encontrada num galpão não tinha pneus. Tentava me equilibrar sobre uma armação de ferro. Os aros em atrito com o chão pedregoso emitiam um ruído que me alertava para o desastre da empreitada. Não tinha como dar certo. Era um pernilongo a pilotar um helicóptero. Faltavam-me força, agilidade e disciplina. Era preciso equilibrar-se, mover os pés em sincronia, olhar para frente e não pensar em nada mais. Algo impossível para mim, um menino recém-saído da experiência com os pecados de um triângulo. Ao pedalar, olhava para baixo, via o horizonte e avistava a silhueta a zanzar em linha reta feito um pequeno capeta zombeteiro. Inseguro e amedrontado, descia a ladeira de poucos metros. Ao virar no pé de limão, o pouco equilíbrio virava queda. Estatelava-me.

“Assim”, dizia-me um irmão já enfurecido sobre a bicicleta sem pneus. O corpo ereto, impulsionava os pés com precisão — o Rocinante esquálido não pateava, obedecia-lhe com devoção. Cavalgava por La Mancha. Eu, um Sancho estatelado, apenas admirava-o. De certa maneira, orgulhava-me ao vê-lo dominar aquela máquina. Estávamos nos adaptando àquele mundo. Tudo ali remetia a um passado muito recente na pequena cidade que deixáramos para trás. A piazada em volta a traquinar. Os gritos, a correria. Já éramos, sem dúvida, animais urbanos. A cada dia, os resquícios do fim do mundo viravam apenas recordação. Corríamos atrás do ônibus que, lento, vencia a subida pela estreita avenida. Mascávamos chicletes sem ao menos desconfiar de sua eternidade. Jogávamos bolinha de gude de olho no videogame. Íamos ao centro comprar calças compridas com mãe. Sempre dava um jeito de esticar os olhos para as entranhas da rua das putas. Mas modelar-se a um mundo que nos esmagava em silêncio não apagava a linha no horizonte, na qual o pequeno traidor se equilibrava sobre uma bicicleta.

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Vila-Matas interrompe a leitura do jornal e pergunta com a voz pausada, quase um sussurro: “Já notou que as folhas das árvores sempre caem?”. “Sim, todos caem. Sempre caem”, respondo a desaparecer no passado.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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