Baratas

Bichos peçonhentos remetem à infância difícil do cronista e ainda hoje causam nele um misto de atração e repulsa
Ilustração: Guilherme Paixão
02/08/2022

O nojo ganha contornos de breves choques no rosto, como se agulhas de acupuntura a tivessem atravessando a pele. Os cantos da boca ensaiam um esgar de repugnância. O inusitado da minha resposta sobre o distante país a ser visitado causara o mal-estar: hospede-se no hotel que tiver menos baratas. Não pensei em Kafka ou em Gregor Samsa (sim, o assombroso inseto não passa de uma barata nos meus sonhos também intranquilos). Os insetos rastejando, de patinhas ágeis, pelas frinchas dos quartos me pareceram o mais importante a informar sobre a viagem de férias que o casal pretendia empreender numa tentativa, talvez ingênua, de fugir de paisagens óbvias. Claro, há também os passeios de camelo. Ao redor, o farfalhar de vozes alegres na festa preenchia o vazio na tarde de domingo.

Sempre convivi bem com animais asquerosos. No paiol de ripas onde brincávamos, os ratos proliferavam em ninhadas graúdas. Ao encontrá-los, os filhotes se mexiam numa massa informe, meio rosada, um aspecto ao mesmo tempo angustiante e sedutor. Parecia algo gostoso de morder, macio, suculento. Uma iguaria aos nossos miseráveis cardápios diários de arroz, feijão e o maldito chuchu. Mas logo se transformariam em pequenos inimigos a nos incomodar nas peraltices pelos vãos da velha morada. Corríamos atrás deles com improvisadas espadas de madeira. Invocávamos em urros os heróis dos desenhos animados que nos chegavam em raios pela velha Telefunken. Pena que era em preto-e-branco. Mas quando as cores aportaram, numa tevê pequena de bordas arredondadas, descobri que me eram um inferno cromático: seria sempre um daltônico atrapalhado a enxergar o mundo de uma maneira torta. Ao encurralá-los (os ratos) a um canto, desferíamos golpes atabalhoados e, por vezes, certeiros. Logo, voltavam à forma de ninhada, mas vermelhos de sangue e desfigurados pela fúria de nossa infância selvagem.

Agora, aranhas passeiam pela casa com certa frequência. Em geral à noite, povoam o piso de porcelanato cinza. Têm um amplo e liso caminho pela frente, mas preferem as frestas, os cantos, os esconderijos entre as lombadas dos livros. São traiçoeiras. No início, assustava-me com o tamanho e a quantidade de algumas. Com o tempo, acostumei-me ao convívio. É muito simples cuidar delas. Hoje, mato-as com a ponta dos dedos ou com o chinelo, dependendo da espessura da inimiga. Ao contrário dos ratos, não me parecem nada suculentas. Viver próximo à vida selvagem, numa cidade pequena, onde cavalos disputam espaço com pedestres e carros, tem algo a ver com voltar no tempo — à infância cercada por um ambiente rural, de pequenos animais e improváveis perigos.

Era um tempo de fome e penúria. Antes de chegarmos a C., a cidade grande que nunca compreendemos, a roça e um ambiente brutal, apesar de lúdico, eram nossa morada. A mãe lavava roupa no rio, sovava o puído tecido com a mesma fúria com que fazia pão. As mãos da mãe nunca foram dadas a delicadezas. O pai corria o mato atrás de jabuticabas e animais silvestres. Nós, os filhos, caçávamos passarinhos e colhíamos serralha sem saber de sua riqueza em vitaminas — não passava de um mato amargo que a mãe afogava em vinagre e sal, e fingíamos todos ser uma deliciosa salada. Lembro do pesadelo em que pés gigantes de serralha corriam atrás de mim e de meu irmão. Hilário e ridículo como boa parte da nossa infância.

Mas naquele dia, o pai chegou com um monstro nas mãos: um gordo lagarto. Um dinossauro em miniatura. Era nojento e atraente. Morto, moldava-se, molenga e comprido, às mãos assassinas do pai. Na lateral da cabeça, via-se o corte do facão. Nunca descobri como o pai conseguira atingir um lagarto com tamanha precisão. Ele, o pai, sempre me pareceu um homem lento, preguiçoso e despreocupado. Com o tempo, tornou-se também violento — uma história óbvia e inesquecível.

A mãe, que nunca cozinhou muito bem, não sabia o que fazer com o lagarto. Mas não podíamos desperdiçar a carne. Encher o bucho supera qualquer ignorância. Ao final, cortou o bicho em pedaços e os depositou no pequeno tacho de ferro. O que aconteceu é um mistério que nunca tentei desvendar. Aos poucos, um fedor quase insuportável preencheu a casa, deu voltas pelas tábuas podres, infiltrou-se em nossas almas perdigueiras. À medida que cozinhava, o lagarto se vingava a sua maneira. O cheiro vinha do fogão a lenha. A mãe agarrou o tacho e correu porta afora feito uma bruxa estabanada. No terreiro, despejou o caldo fedorento. Ficamos todos em volta olhando os pedaços do lagarto misturados à terra. De repente, minha irmã mais nova arqueou o corpo franzino e vomitou sobre o nosso improvável almoço.

Tinha o ridículo sonho de construir um deck de madeira diante de casa. Meus filhos — saudáveis, bonitos e que nunca colheram ou comeram serralha — riem das minhas manias de construtor. Estou sempre às voltas com uma obra. Aos poucos, a calçada deu lugar ao deck. Algo bastante simples: uma fileira de estreitas tábuas lado a lado do portão à porta de entrada. Sempre que olho para o deck, lembro do paiol e dos ratos. Mas não há ratos em torno da casa. É um lugar de descanso. Ao final do dia, arrasto uma leve poltrona e leio à espera da noite e da luz artificial do poste. Nunca me preocupei com o que poderia acontecer no submundo do deck. Uma lona plástica evita que o inço avance para a superfície.

Elas surgiram aos poucos. Quando me dei conta, já faziam parte da rotina. As patinhas ligeiras, o esconder-se de repente, para surgir em seguida: umas traiçoeiras à espera de algo que desconheço. Com o tempo, proliferaram-se, ganharam coragem e me desafiam em meu território. Não havia alternativa: iniciamos uma batalha sangrenta. Talvez tenham surgido devido ao matagal nos terrenos vizinhos. Não me importa a origem. É preciso combatê-las com método e competência. As doses de veneno compradas no supermercado demarcam partes da casa, mas não são a certeza do extermínio. É comum que apareçam no deck sempre no início da noite. As baratas da minha casa são notívagas. É quando temos tempo para a guerra.

No início, um asco me percorria todo o corpo. Baratas sempre me pareçam mais nojentas que ratos esmagados por espadas infantis. Com o tempo, o nojo deu lugar à fúria. Deixo o chinelo ao lado da poltrona e as espero. Elas não podem ultrapassar a soleira da porta. A casa é um território proibido, quase sagrado. Feito um rei num castelo medieval, convoco meu exército inexistente para a batalha. Não é algo muito simples matar uma barata. São lépidas, espertas ao percorrer pequenas distâncias, infiltram-se com facilidade em qualquer fresta.

Ao atingi-las, uma gosma espalha-se. As patinhas ainda se debatem à espera do fim. Viro-as com cuidado. Gosto de vê-las agonizando com a pança gorda para cima. Quando ainda lhes resta algum resquício de vida, observo a morte com certo gosto assassino. Talvez seja uma herança paterna. Aos poucos o movimento se esvai. Aguardo pela próxima inimiga. Elas sempre aparecem.

Uma noite, deixei uma barata morta no piso da garagem. Pela manhã, encontrei o corpo eviscerado por formigas minúsculas e famintas. Elas se banqueteavam.

Lagartos também se alimentam de baratas.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho