Aulas de português

A arte de transformar pequenos sons em um vasto universo de significados
01/11/2011

Não é fácil. A língua teimosa resiste a obedecer ao comando. É sinuoso o caminho entre a minha boca e o ouvido dele. Articulo cada sílaba com lentidão, cadência. Desenho palavras redondas e corretas. Não arrisco um corte abrupto, não engulo consoantes ou vogais, não economizo paciência. A pressa é a certeza da derrota, do desinteresse, do pequeno desastre. Sou um marceneiro a esculpir o móvel ideal. Esparramado sobre o trocador, o corpo à espera do toque, ele me olha na ansiedade do jogo que nos une. É noite e temos tempo. Escondo-o inteiro debaixo da toalha. As gotas de água são pontos incolores espalhados pelo corpo. A surpresa óbvia o faz rir e soltar a palavra que lhe garantirá carinhos intensos: mais. Repito a brincadeira diversas vezes. Sempre a mesma surpresa, o mesmo sorriso, o mesmo pedido: mais.

Agora, o corpo aguarda o creme. Elevo o tubo a uma distância de 50 centímetros. Do alto, deixo o líquido cheiroso escorrer até a sua barriga. Mostro-lhe os dedos e lhe ofereço o som longo dos meus lábios: mão. Ele repete. A palavra lhe enche a boca e explode num sorriso. Iniciamos nossa aula diária. A cada toque no corpo em formação, uma palavra. Coisa simples, quase prosaica. Pé sai fácil e agudo. Nariz transforma-se num fiapo de voz, um quase inaudível “iz”. Intercalo palavras com diversos graus de dificuldade: mamãe e papai servem apenas como aquecimento. Não contam, pois já estão programadas em algum filete do DNA. Orelha é, ainda, grau máximo, impossível. Ele apenas leva as mãos em direção à cabeça e enfia o dedo no ouvido. É ali que as coisas acontecem. Saberá onde guarda os sons que lhe arremesso? Avanço por um trajeto seguro: gol. A pronúncia é perfeita. Mas ele confunde bola e gol. Não sabe o que é gol. Dá um sentido próximo às palavras. Tudo que é redondo, oval, é gol. Inclusive as ervilhas. Menos as azeitonas, que ele chama de algo que ainda estou tentando decifrar. Não é tão simples a tarefa de polir este tesouro que encontramos em nosso sótão particular.

Na tentativa de colocar as coisas em razoável ordem, arrisco: bola. O esforço da língua para alcançar o céu da boca, logo após inflar o corpo com o “bo”, constrói um som engraçado, mas incompreensível. Os ingredientes jogados no pequeno liquidificador resultam em sabores excêntricos. Quase sempre, a língua toma direções contrárias ao comando e relega nossas tentativas a risíveis neologismos. Mas não envergonhamos Guimarães Rosa. Não tripudiamos nossos dicionários. Para encerrar a aula do dia, soletro seu nome na ponta dos lábios: Lorenzo. Ele me olha espantado. Sabe que é ele. Sabe que falo dele. Deve me imaginar um maluco. Se somos somente nós dois na ausência dos demais, por que repetir o próprio nome. Ele sabe o meu nome, eu sei o dele. Sabemo-nos mutuamente. Enquanto coloco a fralda, repito: Lorenzo. Da pequena boca de poucos dentes, apenas o silêncio, nenhum murmúrio, nenhuma iniciativa. A fábrica de neologismos fechara, fim do expediente. Nada pulsa. Após a fralda, visto o pijama e as meias. Tento mais uma vez. Ele me olha e acaricia o peito, antes de dizer “nenê”. Meu filho transforma o nome em algo possível.

Já no corredor, em direção à sala, agarra a bola amarela e a chuta com todas as forças. É sempre gol em seu estádio imaginário.

NOTA
Crônica publicada originalmente no site Vida Breve, em 25 de abril deste ano.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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