Não é fácil. A língua teimosa resiste a obedecer ao comando. É sinuoso o caminho entre a minha boca e o ouvido dele. Articulo cada sílaba com lentidão, cadência. Desenho palavras redondas e corretas. Não arrisco um corte abrupto, não engulo consoantes ou vogais, não economizo paciência. A pressa é a certeza da derrota, do desinteresse, do pequeno desastre. Sou um marceneiro a esculpir o móvel ideal. Esparramado sobre o trocador, o corpo à espera do toque, ele me olha na ansiedade do jogo que nos une. É noite e temos tempo. Escondo-o inteiro debaixo da toalha. As gotas de água são pontos incolores espalhados pelo corpo. A surpresa óbvia o faz rir e soltar a palavra que lhe garantirá carinhos intensos: mais. Repito a brincadeira diversas vezes. Sempre a mesma surpresa, o mesmo sorriso, o mesmo pedido: mais.
Agora, o corpo aguarda o creme. Elevo o tubo a uma distância de 50 centímetros. Do alto, deixo o líquido cheiroso escorrer até a sua barriga. Mostro-lhe os dedos e lhe ofereço o som longo dos meus lábios: mão. Ele repete. A palavra lhe enche a boca e explode num sorriso. Iniciamos nossa aula diária. A cada toque no corpo em formação, uma palavra. Coisa simples, quase prosaica. Pé sai fácil e agudo. Nariz transforma-se num fiapo de voz, um quase inaudível “iz”. Intercalo palavras com diversos graus de dificuldade: mamãe e papai servem apenas como aquecimento. Não contam, pois já estão programadas em algum filete do DNA. Orelha é, ainda, grau máximo, impossível. Ele apenas leva as mãos em direção à cabeça e enfia o dedo no ouvido. É ali que as coisas acontecem. Saberá onde guarda os sons que lhe arremesso? Avanço por um trajeto seguro: gol. A pronúncia é perfeita. Mas ele confunde bola e gol. Não sabe o que é gol. Dá um sentido próximo às palavras. Tudo que é redondo, oval, é gol. Inclusive as ervilhas. Menos as azeitonas, que ele chama de algo que ainda estou tentando decifrar. Não é tão simples a tarefa de polir este tesouro que encontramos em nosso sótão particular.
Na tentativa de colocar as coisas em razoável ordem, arrisco: bola. O esforço da língua para alcançar o céu da boca, logo após inflar o corpo com o “bo”, constrói um som engraçado, mas incompreensível. Os ingredientes jogados no pequeno liquidificador resultam em sabores excêntricos. Quase sempre, a língua toma direções contrárias ao comando e relega nossas tentativas a risíveis neologismos. Mas não envergonhamos Guimarães Rosa. Não tripudiamos nossos dicionários. Para encerrar a aula do dia, soletro seu nome na ponta dos lábios: Lorenzo. Ele me olha espantado. Sabe que é ele. Sabe que falo dele. Deve me imaginar um maluco. Se somos somente nós dois na ausência dos demais, por que repetir o próprio nome. Ele sabe o meu nome, eu sei o dele. Sabemo-nos mutuamente. Enquanto coloco a fralda, repito: Lorenzo. Da pequena boca de poucos dentes, apenas o silêncio, nenhum murmúrio, nenhuma iniciativa. A fábrica de neologismos fechara, fim do expediente. Nada pulsa. Após a fralda, visto o pijama e as meias. Tento mais uma vez. Ele me olha e acaricia o peito, antes de dizer “nenê”. Meu filho transforma o nome em algo possível.
Já no corredor, em direção à sala, agarra a bola amarela e a chuta com todas as forças. É sempre gol em seu estádio imaginário.
NOTA
Crônica publicada originalmente no site Vida Breve, em 25 de abril deste ano.